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"PEC da Transição só resolve metade do problema"

22 de dezembro de 2022

Aprovação por Congresso garante pagamento de R$ 600 do Bolsa Família durante um ano e ajuda quem mais precisa. Mas a parte mais difícil é conseguir receita para arcar com os gastos, diz Graziella Testa, da FGV.

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Imagem foca mãos estendidas de pessoa usando máscara diante da sede do Banco Central, em Brasília. Nas palmas, está escrito "Fome". A pessoa participa de um protesto contra propostas econômicas do governo de Jair Bolsonaro (PL), em janeiro de 2022.
"Não se pode diminuir de forma abrupta um benefício social para miseráveis e pessoas em situação de insegurança alimentar. Mas de onde tirar a receita para tudo isso?", questiona Grazielle TestaFoto: UESLEI MARCELINO/REUTERS

O Congresso Nacional aprovou, na noite desta quarta-feira (21/12), a PEC da Transição em segundo turno, que viabiliza gastos do futuro governo a partir de janeiro de 2023. Além dos dois turnos da Câmara dos Deputados, o projeto também foi analisado pelo Senado, pois continha mudanças em relação ao texto original.

Com isso, o Orçamento do próximo ano, que será debatido nesta quinta, já contará com o texto da PEC. O impacto fiscal da medida é de R$ 145 bilhões, além de mais R$ 23 bilhões para investimentos fora do teto de gastos. O respiro nas contas públicas será usado para bancar o Bolsa Família no valor de R$ 600 e mais R$ 150 para cada família com crianças de até seis anos.

Segundo a cientista política Graziella Testa, professora na Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getulio Vargas (EPPG-FGV), a aprovação da PEC é importante, pois ajuda os mais necessitados, mas seu impacto na economia ainda é incerto. "O governo precisa resolver a segunda metade do problema, que é a mais difícil. Onde encontrar receita para tudo isso?", afirmou ela à DW.

A especialista ponderou ainda a aprovação da PEC pode ser considerada vitoriosa também por conseguir prolongar a criação de uma nova âncora fiscal capaz de substituir o teto de gastos, criticado por lideranças do PT desde a sua instituição, em 2016.

Além disso, servirá como termômetro da futura relação entre Legislativo, Executivo e Judiciário, já que, além de dar segurança social "para aqueles que estavam recebendo um determinado valor do Auxílio Brasil, do Farmácia Popular, e em outros programas sociais", ela configura uma "resposta para as emendas de relator, que são os recursos que são destinados para os parlamentares para suas bases eleitorais, e que tinham um destino incerto", constata. "[É] um exemplo para se pensar os desafios da governabilidade no próximo governo Lula."

Confira abaixo a entrevista na íntegra.

DW Brasil: Como avalia os termos da PEC da Transição aprovada pela Câmara dos Deputados?

Graziella Testa: As modificações feitas pela PEC da Transição no orçamento de 2023 foram uma resposta à bomba relógio que foi construída no orçamento deste ano pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em uma tentativa de ter sucesso eleitoral. Alguns elementos fundamentais como fim dos impostos de combustíveis, o aumento do Auxílio Brasil, que voltará a ser o Bolsa Família, entre outras medidas, criaram uma situação insustentável.

Uma série de novos gastos, alguns com mérito, como o aumento do Auxílio Brasil, [foram instituídos] num contexto de crescimento da fome e da insegurança alimentar. Mas ali já não havia contrapartida da receita, então estava claro que seria preciso mexer no orçamento de 2023 para qualquer um dos eleitos. Alguém ia precisar mudar e entender o que se manteria e qual seria a nova fonte de receita.

A PEC da Transição é, por um lado, uma segurança social para aqueles que estavam recebendo um determinado valor do Auxílio Brasil, do Farmácia Popular, e em outros programas sociais, e por outro lado uma resposta para as emendas de relator, que são os recursos que são destinados para os parlamentares para suas bases eleitorais, e que tinham um destino incerto.

No fim, a PEC é um bom estudo de caso para se falar também da relação entre Legislativo, Executivo e Judiciário. Um exemplo para se pensar os desafios da governabilidade no próximo governo Lula.

Qual o impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), que derrubou o chamado orçamento secreto, na discussão entre Planalto e Congresso sobre a PEC da Transição?

As emendas de relator, ou o "orçamento secreto", se desenvolveu como um instrumento do governo Jair Bolsonaro para criar uma governabilidade que não foi construída por meio do compartilhamento de pastas ministeriais.

O Brasil é um presidencialismo, mas que tem elementos parlamentaristas na construção da coalizão. Então, os presidentes da República, seja Fernando Henrique Cardoso, Lula, Itamar Franco ou Dilma Rousseff, agiram da mesma forma. O presidente convida os partidos que têm uma representação no Congresso Nacional para ocupar as pastas ministeriais e votam com o presidente no Congresso Nacional.

Essa forma de governar não foi seguida por Bolsonaro e para poder governar e ter apoio do Congresso, ele estabeleceu essa possibilidade das emendas de relator, que são inseridas no processo legislativo pelo relator da proposição sem transparência pública, porque não há identificação do deputado que solicitou a emenda, e de execução discricionária do presidente. Isso foi uma forma muito mais cara e menos transparente de dar governabilidade.

Essa decisão do Judiciário [de vetar o orçamento secreto após julgamento] diminui as prerrogativas do presidente da Câmara. Uma parte dos recursos que iriam para o orçamento secreto, uma parte será de execução obrigatória, então o próprio Congresso vai decidir para onde vai, e outra parte será discricionária do presidente da República em emendas individuais.

Se mantém [portanto] a prerrogativa do orçamento para construir governabilidade, mas sem a dimensão da falta de transparência.

Ao mesmo tempo, há um enfraquecimento do presidente da Câmara [Arthur Lira] e o fortalecimento das lideranças partidárias. É uma decisão que torna a construção de governabilidade menos cara e mais transparente, e isso impactou a PEC da Transição ao tirar poder de Lira e da barganha que poderia fazer com o Executivo.

A aprovação da PEC da Transição e a divisão nas emendas de relator são derrotas de Arthur Lira?

São derrotas, porque tira diversas prerrogativas da mão de Arthur Lira. Entendo, inclusive, que parte dessa diminuição de prerrogativas é consequência da diminuição da fragmentação, outro elemento importante nesse processo. Estamos vendo o efeito do fim das coligações para eleição proporcional, e a segunda etapa da introdução da cláusula de desempenho.

Então, a redução do número de partidos políticos com representação na Câmara dos Deputados vai ser muito relevante. Nós ainda não temos um número claro porque os partidos podem se fundir ou os parlamentares podem mudar de siglas por não receberem recursos, mas nós deveremos ter entre 15 e 17 partidos, [um número] distante dos 30 que tínhamos antes.

Ter menos partidos significa criar focos de poder relevante dentro da casa. Alguns líderes partidários que vão conseguir contrabalancear esse poder que estava nas mãos do Lira.

Foram derrotas para Lira, mas ele também conseguiu "estancar a sangria" em relação ao projeto que veio do Senado. Considero uma vitória dele o estabelecimento de apenas um ano para o que foi decidido nessa PEC.

Mas é preciso ter cuidado ao dizer que essa derrota de Lira significa uma vitória de Lula. É uma vitória da coalizão, que inclui Lula e os líderes de partidos que ainda não são parte do governo e podem continuar independentes ao longo do mandato.

Com a redução de dois para um ano, o Planalto precisará negociar gastos que extrapolem o limite do teto de gastos ou de uma nova âncora fiscal. O que isso pode significar na relação com o Congresso?

Existe um desafio para o Presidente da República para o ano que vem. Porém, muita coisa pode acontecer até lá. Provavelmente, o primeiro semestre de 2023 será caracterizado por uma tentativa de reforma administrativa e pela discussão da lei complementar que vai estabelecer uma nova âncora fiscal equivalente ao teto de gastos. O que sair dessas modificações já pode embasar o que podem ser os quatro anos do orçamento.

De todo modo, sabe-se que o orçamento no Brasil é constitucionalmente iniciado pelo presidente da República e emendado pelo Congresso Nacional. O Congresso deixa muito claro que não quer perder a sua a sua possibilidade interferir na formulação desse orçamento, mas esse orçamento permanece na mão do Executivo.

Então, essa delimitação do tempo não foi boa para Lula, mas as discussões que vão acontecer em 2023 e até 2024 podem tornar essa limitação irrelevante. Por isso acredito que o tema não teve uma defesa tão enfática por parte dos representantes do governo.

Recuperação econômica com fome e inflação?

Ainda sobre a derrota de Lira e a nova configuração da Casa, a senhora acha que isso pode interferir na eleição para presidência da Câmara?

A eleição para presidente da Casa é mais imprevisível do que se possa antecipar. Tudo que nós estamos conversando sobre a a PEC da Transição e o cenário atual vai mudar drasticamente em janeiro do ano que vem com a renovação da Câmara dos Deputados, com uma mudança em torno de 50% dos parlamentares. Estamos falando de metade dos membros que nunca estiveram na Casa antes. Isso gera uma imprevisibilidade enorme.

Por outro lado, me parece ser muito difícil que surja uma candidatura de peso nesse momento para contrapor à candidatura de Arthur Lira. E penso que seria um erro se o PT escolhesse lançar a candidatura própria. O partido já sofreu no passado quando não esteve disposto a compartilhar com a coalizão a presidência da mesa. As coisas podem mudar, mas hoje o cenário mais evidente é de uma reeleição do Arthur Lira.

Uma nova regra fiscal deve ser estabelecida pelo governo até agosto do ano que vem. Como essa regra fiscal pode ser formatada?

O primeiro elemento interessante é que a PEC da Transição estabeleceu que essa nova regra fiscal será feita via Projeto de Lei Complementar. Isso é importante porque possibilita ao governo construir uma coalizão de 257 deputados e não de 308 parlamentares, como é o caso da Emenda Constitucional.

Ou seja: se fosse por emenda, a articulação precisaria ser mais pesada, sobretudo porque é mais fácil aprovar algo para gasto do que restrição no Legislativo. É provável que essa nova âncora fiscal não crie um teto absoluto, mas relativo ao gasto e que será limitado pela arrecadação. Se mudar a arrecadação, muda o limite do gasto também, e aí é possível estabelecer uma proporcionalidade.

O mais importante é que essa regra tenha legitimidade e se mantenha, porque o teto de gastos da forma como está agora já foi ultrapassado diversas vezes durante o governo Bolsonaro. Não há um critério para definir até onde pode ir o gasto do governo. É preciso ter uma nova regra que seja relacionada com arrecadação.

Alguns economistas avaliam que o valor desembolsado neste momento com os programas sociais e o aumento do endividamento terão um efeito negativo nas contas públicas, e que também podem afetar novos investimentos. Como a senhora analisa esse argumento?

O que aconteceu com a aprovação da PEC da Transição foi resolver a metade do problema, que é a demanda social. Não se pode diminuir de forma abrupta um benefício social para miseráveis e pessoas em situação de insegurança alimentar.

Agora, o governo precisa resolver a segunda metade do problema, que é a mais difícil. Onde encontrar receita para tudo isso? Para encontrar receita é preciso retirar de outras despesas, e o cenário é que boa parte das despesas obrigatórias e constitucionais compõem uma parte considerável do nosso orçamento.