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EsporteBrasil

Pandemia fez Brasil desistir de sediar Copa América em 1918

11 de junho de 2021

Surto epidemiológico, número explosivo de mortes e um torneio de futebol: são muitas as semelhanças entre 1918 e 2021. Contudo, há mais de cem anos, catástrofe da gripe espanhola fez Copa América no Brasil ser adiada.

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Hospital de emergência montado numa base militar no estado americano do Kansas para tratar pacientes com gripe espanhola
A gripe espanhola assolou o mundo 100 anos antes da covid-19 e matou cerca de 50 milhões de pessoasFoto: picture-alliance/National Museum of Health and Medicine

"O Rio é um hospital gigante", "Sem médicos, sem remédio", "O governo é criminalmente negligente". Frases como essas estampavam, em letras garrafais, as capas dos principais jornais brasileiros. O mundo estava submerso em uma de suas piores crises sanitárias, e o Brasil era sede de uma das principais competições de futebol de seleções.

Parece o cenário atual, mas era 1918, quando, diferentemente deste ano, decidiu-se que não havia alternativa a não ser adiar a terceira edição do Campeonato Sul-Americano de Seleções – como era conhecido o torneio internacional de futebol mais antigo do mundo antes de ser renomeado para Copa América, em 1975.

Faltando um mês para o início da competição, há 103 anos, o extinto jornal carioca Gazeta de Notícias estampou as manchetes mencionadas no início deste texto. Exceto pelo papel amarelado em que estão impressas, as chamadas poderiam facilmente ter sido publicadas em 2021, segundo ano de combate global à covid-19 e quando ocorrerá a 47ª edição da Copa América.

A pandemia de coronavírus não representa o primeiro grande desafio sanitário global da humanidade, e muito provavelmente não será o último. Em 1918, no rescaldo de um já dilacerado cenário global devido à Primeira Guerra Mundial, corriam os primeiros relatos de uma doença mortal na Europa. Países como Alemanha, Reino Unido, França e Estados Unidos minimizaram sua mortalidade, numa espécie de censura para poupar suas populações de novos dissabores após quatro anos de guerra.

Pessoas em leitos recebendo tratamento contra a gripe espanhola num hospital de campanha americano na França
Cenas que se repetem: hospital de campanha do Exército americano na França para tratar pessoas com gripe espanhola Foto: picture-alliance/Everett Collection

Mas na neutra Espanha não houve discrição nos relatos do surto epidemiológico, que acabaram criando a conturbada impressão de que o país estava mais afetado pela doença do que outras nações. Assim, a gripe que estourou em janeiro de 1918 e em três anos matou cerca de 50 milhões de pessoas (há estimativas que falam em até 100 milhões de óbitos) acabou por ser apelidada de gripe espanhola.

"Não havia quem enterrasse os mortos"

Embora as conexões entre países e continentes fossem mais lentas na época, o pesadelo pandêmico também chegou com força ao Brasil.

"Foi assustador ver a velocidade com que o vírus se espalhou e o número de pessoas afetadas", escreveu o historiador Pedro Nava, que vivenciou a pandemia no Rio de Janeiro. "O mais terrível não foi a quantidade de vidas perdidas, foi que não havia quem fizesse caixões, levasse ao cemitério, cavasse sepulturas ou enterrasse os mortos."

Na época, as autoridades inicialmente se recusaram a fechar os portos da cidade do Rio de Janeiro, relutantes em prejudicar a economia. Pediu-se aos cidadãos que ficassem em casa, principalmente à noite, e muitos estabelecimentos fecharam as portas.

O futebol, no entanto, não parou. Embora ainda amador, o esporte já despertava grande paixão no Brasil. Jornais da época relataram que havia jogadores entre os doentes. Alguns morreram, entre eles João Cantuária, estrela do São Cristóvão, e o atacante inglês Archibald "Archie" French, do Fluminense, que fez parte do elenco campeão carioca de 1918, concluído somente em janeiro de 1919.

"O futebol só parou quando o número de mortos atingiu um nível crítico", disse o professor de história João Malaia, da Universidade Federal de Santa Maria, em entrevista à agência francesa de notícias AFP.

Depois da dor, a primeira glória nacional no futebol

O Campeonato Sul-Americano de Seleções de 1918 era apenas a terceira edição do torneio e a primeira a ser disputada em solo brasileiro – as edições anteriores foram realizadas na Argentina (1916) e no Uruguai (1917). A partida inaugural estava marcada para 10 de novembro, dois meses depois que o Brasil detectou o primeiro caso de infecção por gripe espanhola.

De outubro a dezembro de 1918, cerca de 65% dos 30 milhões de brasileiros foram infectados pelo vírus, segundo dados da Fiocruz. O Rio de Janeiro, então capital do país, registrou mais de 14 mil mortes. São Paulo, a capital econômica, contabilizou mais de cinco mil óbitos.

"Muitos caíram mortos na rua, com o rosto colado na sarjeta. E foi lá que ficaram", escreveu o célebre cronista Nelson Rodrigues em 1971.

O Campeonato Sul-Americano de Seleções acabou por ser adiado de 1918 para 1919 devido à pandemia. O Brasil se manteve sede, e o adiamento caiu bem, já que permitiu que se remodelasse o Estádio das Laranjeiras, o palco único do torneio.

Passageiros em bonde nos EUA em 1918 usando máscaras para se proteger da gripe espanhola
Uso de máscara no transporte público era rotina em 1918, como mostra esta foto tirada em Seattle, nos EUAFoto: Eibner Europa/imago images

Apenas quatro seleções participaram – Brasil, Uruguai, Argentina e Chile – e o Brasil conquistaria seu primeiro título da história após derrotar os uruguaios na prorrogação da final, graças ao gol solitário de Arthur Friedenreich, o primeiro grande craque do futebol brasileiro e neto de um alemão judeu.

Em 2021, Brasil como anfitrião tampão

A edição atual também foi adiada – de 2020 para 2021 – devido à pandemia. Os países-sede eram Colômbia e Argentina, mas inquietações políticas que culminaram em protestos violentos de magnitude histórica fizeram a Colômbia desistir da organização no início desde ano. Pouco depois, a Argentina também sinalizou que preferia abdicar de sediar a Copa América, alegando que o torneio seria impraticável dada a situação sanitária no país, cujas taxas percentuais de infecções e óbitos são consideravelmente inferiores às do Brasil.

E numa manobra de desespero por parte da Conmebol, os dirigentes decidiram convocar o Brasil como alternativa tampão. A justificativa soa compreensível: o Brasil foi sede da última Copa América, em 2019, e também da Copa do Mundo de 2014 e, portanto, possui a infraestrutura e o conhecimento para a organização da competição a tão curto prazo.

A ideia original era utilizar estádios construídos ou remodelados para o Mundial de 2014 e que estavam em desuso, como é o caso das arenas em Manaus, Natal, Recife, Brasília e Cuiabá.

O então presidente da CBF, Rogério Caboclo, que depois seria licenciado do cargo em meio a acusações de assédio sexual, e o presidente Jair Bolsonaro abriram as portas do Brasil para a Copa América.

Nesta semana, o país ultrapassou a marca de 480 mil mortes por covid-19, e a taxa de mortalidade relativa à população é a décima maior do mundo. Em meio aos altos índices, o aval de Bolsonaro – acusado de adotar medidas e posturas que contribuíram para a explosão de mortes no Brasil – abriu uma nova frente de batalha política no país.

Governos de estados que apoiam Bolsonaro ofereceram suas arenas, enquanto governos opositores fecharam as portas e se negaram a receber jogos. Patrocinadores retiraram seus apoios à Conmebol, e até os jogadores da seleção brasileira se manifestaram contrários ao torneio no Brasil.

Críticos entraram com ações no Supremo Tribunal Federal (STF) para que a competição fosse suspensa, mas sem sucesso. Nesta quinta-feira, a Corte rejeitou as ações e autorizou a realização da Copa América, de 13 de junho a 10 de julho.

pv/ek (AFP, ots)