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Os ensinamentos dos indígenas no enfrentamento da pandemia

Philipp Lichterbeck
Philipp Lichterbeck
8 de abril de 2021

Na aldeia de Nova Jutaí, todos ouviram conselhos dos caciques e agentes de saúde: usem máscara, mantenham distância, nada de reuniões. Imagino o que teria acontecido se as condições fossem iguais às do resto do Brasil.

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Moradores aguardam teste rápido de coronavírus realizado por integrantes do grupo de voluntários "Vidas Indigenas Importam" na comunidade indígena Igarapes do Diuna, às margens do rio Negro, em Manaus, estado do Amazonas, Brasil, 6 de fevereiro de 2021.
"Aldeias nas quais a cultura indígena está intacta e viva enfrentaram a pandemia melhor que outras"Foto: Bruno Kelly/REUTERS

Estive no curso superior do imponente rio Solimões, onde o Brasil faz fronteira com a Colômbia e o Peru. Visitei várias comunidades indígenas. Queria ver como as aldeias estão se saindo durante a pandemia de coronavírus.

Uma coisa me chamou atenção: aldeias nas quais a cultura indígena está intacta e viva enfrentaram a pandemia melhor que outras. As pessoas se uniram para manter o vírus longe, não teve brigas nem sabotagem. Um bom exemplo disso é a aldeia de Nova Jutaí, que fica no rio Igarapé de Belém, na Terra Indígena Évare I. De Belém do Solimões (AM), a cidade maior mais próxima, leva duas horas de barco para chegar até ali.

Nova Jutaí tem quase 100 moradores. Alguns deles estavam doentes, incluindo o residente mais velho, um homem de 71 anos. Mas ninguém morreu, e o vírus não se espalhou na aldeia. Por quê? Porque todos aqui ouviram os conselhos dos caciques, pajés e agentes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai): usem máscara, mantenham distância, nada de reuniões, e só peguem o barco para fazer algo na cidade em casos muito urgentes.

O povo de Nova Jutaí é tikuna e fala apenas sua língua indígena. Eles vivem da pesca, da caça e do cultivo de banana, mandioca, açaí e cupuaçu. Também fabricam vassouras e cestos de materiais naturais. Várias famílias recebem Bolsa Família.

Existe uma grande coesão social na aldeia. Isso também tem a ver com o fato de haver uma pequena igreja católica no local, mas nenhum templo evangélico. Os monges capuchinhos, que de vez em quando vêm de Belém do Solimões para celebrar os serviços religiosos, incentivam o povo tikuna a preservar sua cultura. Dizem que sua língua, suas vestes tradicionais, sua comida, seus remédios, suas festas, sua música e suas danças são boas e devem ser motivo de orgulho. As missas são celebradas no idioma tikuna, e a igreja é decorada com folhas de palmeira e flores da selva.

Influência de evangélicos

Em muitas aldeias onde há evangélicos a cultura indígena é demonizada. Os evangélicos semeiam a discórdia e colocam as comunidades umas contra as outras. Eles as enfraquecem. De repente, muitos índios evangélicos rejeitam as antigas tradições de seus povos.

Para Nova Jutaí, a pandemia de covid-19 já passou. Todas as pessoas com mais de 18 anos foram vacinadas. Os nativos brasileiros tiveram prioridade na campanha de vacinação, e a Sesai fez um trabalho muito bom e ágil na região do Alto Solimões.

Houve problemas, porém, em aldeias com forte influencia evangélica. Muitos indígenas evangélicos se negaram a ser vacinados porque ouviram dos pastores (e do presidente do Brasil) que a vacinação era perigosa. Foi isso que vi na aldeia Sapotal, no rio Solimões. Lá vivem os índios kokama, cuja cultura já está enfraquecida.

A coesão social em Sapotal é frágil, ninguém mais fala kokama. Pelo menos três homens morreram de covid-19, após terem ido à cidade de Tabatinga (AM), onde foram infectados. Entre eles estava o vice-cacique e fundador da Igreja Evangélica de Sapotal. Eu conheci seu filho. Apesar do destino do pai, ele não quer ser vacinado pela Sesai.

Já em Nova Jutaí, as coisas voltaram ao normal. As pessoas trabalham e também retornam ao convívio social.

Imagino o que teria acontecido se as condições em Nova Jutaí fossem iguais às do resto do Brasil: se a aldeia tivesse um cacique que dissesse às pessoas que não precisam levar o coronavírus a sério, que não precisam usar máscaras, que podem continuar a se reunir e que não precisam ser vacinadas.

Teria havido mortes em Nova Jutaí, e a aldeia ainda estaria lutando contra o vírus. A vida econômica continuaria paralisada, e as pessoas, inseguras. Felizmente, o cacique de Nova Jutaí é um homem mais inteligente que o presidente da República.

Um chá milagroso?

Outra coisa me chamou atenção durante a viagem: em todas as aldeias que visitei, as pessoas falavam de um chá feito de jambu, limão, alho e mel que supostamente alivia a tosse e as dificuldades respiratórias de pacientes com covid-19.

Essa história eu ouvi não apenas uma, mas uma dezena de vezes. Ela me foi contada por vários pajés, assim como por pessoas que ficaram gravemente adoecidas. E foi também confirmada pelo coordenador do Polo Base da Sesai em Belém do Solimões, que afirma que o chá de jambu já ajudou muitos doentes. Parece que agora o instituto de pesquisas da Fiocruz quer analisar a erva mais de perto.

Não seria uma bela ironia do destino se descobríssemos que o jambu ajuda no combate à covid-19? Não a hidroxicloroquina recomendada pelo presidente Jair Bolsonaro, mas uma erva amazônica. Bolsonaro disse certa vez: "Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós". Acho que seria melhor para o Brasil se Bolsonaro virasse cada vez mais um ser humano como os índios.

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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais na Alemanha, Suíça e Austria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

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Cartas do Rio

Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio de Janeiro, em 2012. Na coluna Cartas do Rio, ele faz reflexões sobre os rumos da sociedade brasileira.