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Na Ucrânia, Putin anula "Grande Guerra Patriótica" da Rússia

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Ivan Preobrazhensky
9 de maio de 2022

Vitória soviética contra Alemanha nazista na 2ª Guerra era central para a identidade russa. Ao invadir o país vizinho, porém, chefe do Kremlin comprometeu o passado e criou um futuro cinzento, opina Ivan Preobrazhensky.

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Mulheres envolvidas em bandeira ucraniana posam para selfie diante de monumento de rosto suspenso enfiando revólver na boca
"Na Rússia haverá purgações em massa ou guerra civil – enquanto a Ucrânia nunca esteve tão unida"Foto: Efrem Lukatsky/AP/picture alliance

Bombas caem sobre Kiev, Kharkiv e Odessa – uma ofensiva traiçoeira, sem declaração de guerra. Antes, ao ouvir tais palavras, sabíamos que se tratava de um ataque da Alemanha nazista à União Soviética, da "Grande Guerra Patriótica", como os russos chamam o conflito de 1939 a 1945.

A Segunda Guerra Mundial dividiu o tempo em "antes" e "depois", e por décadas não se precisava explicar mais nada: quando se falava do "pós-guerra", todo mundo sabia que queria dizer "depois de 1945". Desde fevereiro de 2022, contudo, uma outra guerra separa o passado do presente, porém desta vez a Rússia é o agressor.

Até então, a lembrança da vitória na Segunda Guerra era a base da identidade russa. Todas as enquetes e estudos desde o fim dos anos 1990 comprovam sua importância na consciência pública nacional. Não é por acaso que o regime Putin transformou a lembrança dessa vitória na narrativa central para manter unida a sociedade do país. Ela se tornou uma espécie de religião civil, aceita pela maioria da população.

Por exemplo, as vítimas da Segunda Guerra são homenageadas com a ação "Regimento Imortal". A ideia partiu inicialmente da sociedade, como alternativa ao páthos triunfal do Estado e a slogans como "Podemos fazer de novo". No entanto, logo a propaganda estatal se apropriou dessa iniciativa cidadã.

O mesmo aconteceu com a Fita de São Jorge, originada numa condecoração militar do Império Russo e mais tarde reinstituída na União Soviética sob outro nome. Na Rússia, ela é hoje o mais importante sinal de recordação da derrota da Alemanha nazista. Também aqui, a sociedade russa seguiu a propaganda do Kremlin.

Rússia, nova "prisão de povos"

Em 24 de fevereiro de 2022, no entanto, o próprio Vladimir Putin derrubou esse pilar da identidade russa. Agora as tropas russas na Ucrânia não só disparam contra Kharkiv e Odessa, elas invadem Mykolaiv e sitiam Kherson; lançam bombas nas proximidades do memorial do Holocausto Babin Yar, em Kiev, e, por medo, alvejam tanques de combate que as cidades ucranianas colocaram sobre pedestais, em memória da Segunda Guerra.

Seu alvo não é só aquela "Grande Vitória": é um ataque com tanques, tanto metaforicamente, à memória dos veteranos do conflito, como literalmente, aos próprios veteranos, às poucas testemunhas ainda sobreviventes da Segunda Guerra que não podem deixar seus apartamentos e casas por causa dos bombardeios russos.

Qualquer que seja o resultado da guerra ofensiva desencadeada por Putin (se não acabar em ataque nuclear), os ucranianos e aqueles russos que se opõem à agressão têm agora a sua guerra, a "Grande Guerra Patriótica Ucraniana", como já é denominada. Agora ela vai dividir as vidas de gerações inteiras em "antes" e "depois".

Essa guerra – e não qualquer outra, como a contra a Geórgia, em 2008, ou a anexação da Crimeia, em 2014 – marcará tanto o fim do período pós-soviético como também o do próprio "espaço pós-soviético": agora há o "Império da Rússia" e os que conseguiram se libertar dele lutando.

E a Rússia, por sua vez – que graças à derrota da tentativa de golpe de Estado de 1991, em Moscou, conseguiu preservar a aparência de "principal democracia" do espaço pós-soviético –, se converterá agora definitivamente numa "prisão de povos", como a União Soviética costumava ser chamada.

"Nova Rússia do futuro", uma perspectiva amarga

Nem todos sentirão imediatamente as mudanças em curso. Enquanto na Ucrânia uma "nova era" começou em fevereiro de 2022, muitos russos continuam de cabeça enfiada na areia, como a proverbial avestruz. Porém também eles estão no limiar de um "novo tempo", que inevitavelmente chegara como um duro golpe.

Ele será marcado pelas sanções do Ocidente e as contrassanções do Kremlin, que também atingem o próprio povo; pelo incontornável aumento dos preços dos alimentos, devido à falta de plantio no Sul da Rússia e na Ucrânia; escassez de mercadorias e inflação galopante, geradas pelo isolamento. Quando, descontentes com tudo isso, os russos saírem às ruas em protesto, lá estarão, para recebê-los, a polícia e a Guarda Nacional.

Os russos finalmente conseguiram sua "nova Rússia do futuro", mas ela não é nenhum mar de rosas. Agora se constata que Vladimir Putin tinha uma visão clara do futuro do país, mas que não revelou ao longo de todos esses anos, já que ela definitivamente não agradaria à maioria da população, a qual poderia ter se rebelado.

Agora a maioria se encontra num país totalmente diferente, que sequer se assemelha ao anterior, com censura militar e isolado do resto do mundo. O fundamento da identidade nacional russa, a vitória sobre o fascismo, foi detonado pelos lança-mísseis que atingem Kharkiv. A Rússia está a caminho de um conflito social, e o chefe do Kremlin rompeu a última barragem.

Agora, ou haverá purgações em massa contra os dissidentes, ou o conflito na sociedade desembocará numa guerra civil – se os antibélicos e pacifistas ainda forem capazes de opor resistência. Na Ucrânia, a situação é outra: ela nunca esteve tão unida como desde o começo da "Grande Guerra Patriótica" – não importa como este conflito acabe.

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Ivan Preobrazhensky é colunista da DW. O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.