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Opinião: A credibilidade da Europa está em jogo

Jan-Werner Müller (pv)16 de setembro de 2015

UE está sob críticas por falhar no gerenciamento da crise do euro, dos refugiados e por violar valores fundamentais. Os políticos deveriam seguir a lição dada pelos cidadãos, opina o cientista político Jan-Werner Müller.

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Foto: Getty Images/AFP/D. Dilkoff

A palavra "crise" deriva do grego antigo krinô, que significava "separar" ou também "decidir" ou "julgar". Segundo a estudiosa americana Janet Roitman, o termo foi usado inicialmente em direito, teologia e medicina – mas o uso médico, eventualmente, tornou-se dominante: "crise" era o momento no qual o destino do paciente era decidido. A pessoa melhorava ou morria.

As recentes crises na União Europeia (UE) não ocorreram desta maneira: a crise do euro já dura mais de meia década; o que atualmente é comumente chamado de "crise migratória" está, de fato, se arrastando há anos; e, menos óbvio, a crise da democracia liberal em alguns dos Estados-membros da UE – mais notavelmente na Hungria, onde um governo de direita tem atacado o Estado de direito e a sociedade civil – está crescendo há cinco anos.

Mas enquanto a "crise" na Europa não chegou ao momento decisivo, ela nos leva a outro, e mais velho, significado da palavra: um julgamento. Neste caso, um julgamento severo da rapidamente decadente credibilidade da União Europeia. Quando seus líderes pregam – tanto dentro da Europa como para o resto do mundo – valores de solidariedade e tolerância, as plateias vinculam as palavras com imagens como as da cerca de arame farpado na fronteira entre Hungria e Sérvia.

E, menos óbvio, a UE está perdendo credibilidade na defesa de seu método de enfrentar desafios políticos através de processos longos, destinados a resultar num compromisso ou até mesmo num consenso.

A própria abordagem que fez a integração europeia funcionar no passado – a política como ferramenta negociadora, muitas vezes fomentada ao longo de anos e sempre evitando crises que poderiam ter sido resolvidas com decisões de "tudo ou nada" – entrou na lista de vergonhas da UE: quanto mais a crise se arrasta, mais há a sensação de que a Europa é um lugar onde certas coisas uma vez consideradas impensáveis são efetivamente toleradas: a violação da dignidade de refugiados, a odiosa retórica nacionalista (seja sobre gregos ou alemães), ou governos de Estados-membros sob flagrante violação dos "valores fundamentais" da UE.

Obviamente, nem todas as diversas crises na Europa são da mesma natureza – e seria tolice fingir que a UE não passou por vários períodos críticos antes. Devemos distinguir crises de competência – essencialmente falhas de governança – e crises de valores ou, mais claramente, de moralidade política. Na dinâmica da crise do euro o primeiro fato levou ao último: o que inicialmente era apenas uma união monetária mal concebida acabou incentivando o nacionalismo imoral – tanto em níveis de elite como populares –, o que a criação da União Europeia deveria prevenir.

Com a chamada crise migratória e a crise da democracia na Hungria, ocorre o contrário: o que no início era uma flagrante violação dos valores fundamentais professados pela UE – direitos humanos e democracia – resultou em efeitos colaterais a nível europeu que dão a impressão que as políticas globais da União Europeia, tais como a Convenção de Dublin sobre os refugiados, são simplesmente disfuncionais.

As crises de competência e a crise da moralidade eventualmente se fundiram numa crise de credibilidade que sugere que a UE simplesmente não consegue manter suas próprias promessas. Até a crise do euro, os defensores do bloco europeu apresentavam a UE como a inovação institucional mais importante na política desde a criação do Estado democrático de bem-estar social, também chamado de Estado-providência.

Eles nunca deixaram de ressaltar o seu grande "poder normativo" – sua enorme atratividade baseada na paz, bem como a prosperidade alcançada através do mercado comum e, menos óbvio, uma coerente ordem jurídica supranacional. A União Europeia foi apresentada como um modelo global; estimulou países vizinhos a buscar mudanças ou, de fato, a tentar entrar para o bloco.

Contudo, os últimos anos não foram exatamente bons para o poder da União Europeia, seja ele normativo ou não. A Europa esteve praticamente ausente da Primavera Árabe (foi uma desculpa para lá de conveniente dizer que as memórias do colonialismo impediram um envolvimento mais incisivo). A Europa tem sido incapaz de formar uma estratégia de como lidar com a Ucrânia (a UE não quer deixar o país abandonado, mas também não está disposta a traçar um caminho para a adesão).

E Bruxelas tem sido incapaz de aliviar as tensões criadas pela crise do euro. Pelo contrário: tem se cristalizado uma narrativa que coloca país contra país – alemães contra gregos –, ao invés de diferentes grupos de diferentes países, como bancos e sindicatos, que perseguem interesses conflitantes.

Desta forma, as crises dos últimos anos realmente têm sido existenciais numa forma que crises – e conflitos – anteriores sobre interesses econômicos ou buscas por glória nacional (basta relembrar as tentativas do ex-presidente francês Charles de Gaulle de moldar a seu próprio gosto o que era a então Comunidade Europeia) não foram.

Elas semearam dúvidas sobre a íntima lógica política da UE, segundo a qual um processo longo sempre é melhor do que qualquer ação rápida e decisiva; elas mostraram que a ideia de deixar as instituições, em detrimento de indivíduos, fazer o trabalho político para alcançar um compromisso razoável não tem realmente funcionado.

Existe alguma coisa positiva sobre as crises dos últimos anos? Não devemos ficar tentados pelo clichê de que cada crise é uma oportunidade – a elite europeia certamente não mostrou qualquer tipo de coragem na liderança de seus próprios povos numa direção que estaria em maior conformidade com os declarados "valores fundamentais" da Europa.

Se há algo, são os cidadãos europeus – todos aqueles que resistiram às paixões nacionalistas potencialmente provocadas pela crise do euro ou a crise migratória – que demonstraram que a Europa tem de fato mais credibilidade do que a União Europeia. Elites europeias poderiam levar no coração – e como lição de moralidade política – a forma que multidões acolheram refugiados em Munique e Viena.

Jan-Werner Müller é professor de política na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Entre suas publicações mais recentes está o livro Contesting Democracy: Political Ideas in Twentieth-Century Europe(Contestando a democracia: odeias políticas na Europa do século 20, em tradução livre).