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Liberdade de imprensaRússia

O desmanche da imprensa independente na Rússia

Rayna Breuer | Anastassia Boutsko
3 de maio de 2022

"Era dourada" para imprensa após fim da União Soviética, nos anos 1990, durou pouco. Depois que assumiu o poder em Moscou, Putin se tornou o coveiro do jornalismo russo.

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Homem sentado em frente a várias televisões
Cobertura 24 horas por dia a favor do regime na televisão russaFoto: Anton Novoderezhkin/TASS/dpa/picture alliance

Quando em 19 de agosto de 1991, o balé Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, foi exibido durante horas na televisão soviética em vez das notícias habituais, os cidadãos rapidamente desconfiaram que algo estava errado. As forças reacionárias no Partido Comunista da União Soviética (CPSU), o exército e a KGB tentavam derrubar o presidente Mikhail Gorbachev. Eles não aprovavam suas políticas reformistas de "glasnost" (abertura) e "perestroika" (transformação), mas o golpe falhou.

Hoje, não há gravações de balé na televisão estatal russa. Em vez disso, notícias e programas políticos legitimam as políticas do Kremlin e as apresentam com uma boa maquiagem. A linguagem popular apelidou essa programação de "caixa zumbi".

Mas o papel da imprensa na Rússia nem sempre foi tão claramente submisso como é hoje.

Os dourados anos 1990

Após décadas de paternalismo do regime comunista, a imprensa pode moldar a mudança política como atores independentes no curso da glasnost e da perestroika. "Após o fim da União Soviética, houve uma enorme demanda por um noticiário independente entre a população russa. Por exemplo, em um tempo muito curto surgiu um grande número de jornais impressos. Não apenas em Moscou e São Petersburgo, mas em todo o país. O cenário da mídia era muito vívido e noticiava abertamente sobre o fim da União Soviética, mas também sobre o passado comunista", conta Ulrike Gruska, porta-voz da ONG Repórteres sem Fronteiras.

Mas esta "era dourada" terminou muito rapidamente para os veículos impressos. A crise econômica de 1993/1994 causou o fechamento de muitos jornais. O papel das emissoras de televisão, que não eram controladas pelo Kremlin, mas por poderosos empresários, tornou-se ainda maior.Oligarcas como Boris Berezovsky e Vladimir Gussinski compraram os principais canais de TV do país, incluindo ORT e NTW. Com seus impérios midiáticos, eles controlaram significativamente a política na Rússia nos anos 1990. Nas eleições presidenciais de 1996, por exemplo, os oligarcas ajudaram o democrata Boris Yeltsin a derrotar o comunista Gennady Zyuganov ,e assim impediram que as velhas elites voltassem ao poder.

Homem com cartaz em que aparece Anna Politkowskaja
A jornalista russa Anna Politkovskaya foi morta em outubro de 2006Foto: Sergei Ilnitsky/dpa/picture alliance

Mas as empresas de Gussinski e Berezovsky nem sempre tinham a mesma linha política: enquanto o primeiro criticava cada vez mais o Kremlin, Berezovsky apoiou Yeltsin e mais tarde Putin. A emissora de Gussinski, NTW, por outro lado, relatou abertamente a brutalidade da guerra da Tchechênia e, como resultado, ganhou reputação em todo o país.

O declínio da mídia russa desde 2000

O canal ORT pró-Kremlin de Berezovsky apoiou Putin em sua luta pela presidência e o ajudou a vencer em 2000,

mas 20 anos depois Putin se tornou o coveiro da imprensa livre. Desde 2000, a liberdade de ação dos jornalistas tem sido maciçamente reduzida. "Imediatamente após tomar posse, ele começou a colocar a mídia sob controle estatal. A emissora NTW foi espetacularmente esmagada. Forças de segurança fortemente armadas entraram na redação. Algumas das ações chegaram a ser transmitidas ao vivo. Sob vários pretextos e acusações, Gussinski passo a passo foi sendo privado de seu poder", explica Gruska.

Um destino semelhante aconteceu com o antigo benfeitor de Putin: o fato de Berezovsky se distanciar cada vez mais de sua política não foi perdoado pelo homem poderoso do Kremlin. A emissora ORT de Berezovsky foi colocada sob controle estatal. Hoje, como "Primeiro Canal", é o microfone do Kremlin.

Ano após ano, cada vez mais vozes livres no país se calaram: após as manifestações de 2011/2012 contra supostas falsificações nas eleições parlamentares, e depois da anexação da Crimeia e a eclosão da guerra em Donbass em 2014, o controle se tornou ainda mais rigoroso. Enquanto os canais afiliados ao Estado propagavam exclusivamente a retórica oficial do Kremlin, a mídia crítica foi denunciada como "traidora" e "agente".

Na véspera dos Jogos Olímpicos de Sochi 2014, a Repórteres sem Fronteiras considerou o "jornalismo independente" no país uma "arte marcial". Portanto, não é surpreendente que em 2017, em uma pesquisa da Fundação Körber, 76% dos russos entrevistados pensavam que a tarefa da imprensa era apoiar o governo em seu trabalho e em suas decisões.

Desde que Putin assumiu o governo em 2000, 37 jornalistas foram assassinados na Rússia, segundo dados da Repórteres sem Fronteiras.

Internet como saída?

Durante muito tempo, o único lugar que restava para vozes críticas ao regime era a internet, onde a mídia e os blogueiros ainda podiam agir de forma meio normal. "A liderança russa estava atrasada no reconhecimento da importância da internet para o discurso social", diz Ulrike Gruska. "Em comparação com outros regimes repressivos como a China, por exemplo, onde a internet foi criada como uma rede estritamente controlada desde o início, a rede na Rússia é descentralizada. Há várias interseções com países estrangeiros, há dezenas de provedores de comunicação pelos quais o tráfego passa."

Entretanto, Moscou reconheceu a relevância da internet e silenciou toda a mídia independente com uma série de mudanças legais. Atualmente, redes sociais como Instagram e Facebook, assim como site de veículos estrangeiros só podem ser acessados por meio do uso de VPN. A autoridade supervisora da mídia Roskomnadzor pode bloquear plataformas a qualquer momento, e computadores ou smartphones devem vir com programas russos pré-instalados.

Abolindo a democracia com leis

A partir de 2011/2012, Moscou apertou ainda mais os parafusos. Uma lei atrás da outra foi aprovada, o que dificultou o trabalho dos jornalistas: relatar sobre mansões ostensivas ou altos salários de funcionários do governo que cheiravam a corrupção? Proibido. Revelações sobre conluios duvidosos? Proibido.

Putin em cartaz numa manifestação russa
Protestos em massa após as eleições da Duma de 2011 e o anúncio de Putin de que ele se candidataria novamente à presidênciaFoto: Russland Moskau/AFP/Getty Images

Organizações internacionais que são politicamente ativas na Rússia e recebem dinheiro do exterior têm que se inscrever como "agentes estrangeiros" em um registro estatal. As multas e as penas de prisão estão na ordem do dia.

"É evidente que o discurso democrático mudou fundamentalmente. As vozes críticas ao regime estão agora quase todas no exterior e não é fácil avaliar quanta informação independente ainda chega à Rússia ou, o que talvez seja mais importante, até que ponto ela é recebida e aceita lá", diz Gruska.

"Ouço isso repetidas vezes de amigos e colegas que o maior problema é não conseguir informar os russos de que há uma guerra em curso na Ucrânia e que as casas estão sendo bombardeadas. O problema é que muitos, mesmo quando ouvem isso, simplesmente não acreditam porque foram inundados com o conteúdo da televisão estatal por duas décadas. Grande parte da população adotou agora a narrativa do Kremlin: isto é, que existe um regime nazista na Ucrânia do qual os ucranianos precisam ser libertados".

2022: o golpe definitivo

Os acontecimentos das últimas semanas e meses resultaram no extermínio da imprensa livre na Rússia. O ponto final começou no início do ano com uma grande limpeza no cenário midiático russo, que incluiu o fechamento do escritório da Deutsche Welle em Moscou e a retirada das acreditações para os correspondentes da emissora que trabalham no país.

Após a invasão russa da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, a mídia independente foi sucessivamente amordaçada. O golpe atingiu mesmo aqueles que pareciam em segurança devido à sua popularidade.

Em 1º de março de 2022, a emissora de rádio independente Ekho Moskvy, fundada em 1990, foi retirada do ar, e seu site bloqueado. O relato franco e corajoso sobre os primeiros dias da guerra de agressão contra a Ucrânia tornou-se o "canto do cisne" da estação.

Muratov todo pintado de vermelho fazendo selfie
Editor-chefe da Novaya Gazeta, Dmitry Muratov, agredido com tinta vermelha em um tremFoto: Nvaya Gazeta Europe's Telegram channel/AP/dpa/picture alliance

A muito mais jovem emissora de TV Doschd (TV Rain) não se saiu melhor. O canal online independente, fundado por jornalistas em 2010, foi o porta-voz da jovem geração russa de protestos. A Doschd foi fechada no início de março de 2022 "por falsas informações sobre os eventos na Ucrânia". A maioria dos membros da equipe editorial deixou o país apressadamente e estão sendo feitas tentativas para reconstruí-la em Tbilisi, Geórgia.

Os próximos foram a Novaya Gazeta e seu fundador e Prêmio Nobel Dmitri Muratov, um ícone do jornalismo russo e internacional. Durante anos, a Novaya possuía uma das melhores equipes de investigação da Rússia, e sua última grande ação foi uma reportagem radicalmente honesta sobre as cidades ucranianas destruídas.

Ainda há vozes livres e independentes na Rússia? Há, "mas elas não podem publicar nada", admite Gruska. "A maioria dos jornalistas independentes estão agora no exterior". E, de lá, suas vozes dificilmente podem ser ouvidas no país − estruturas de poder com medidas repressivas e bloqueios de internet garantem isso. "A situação da mídia na Rússia hoje faz lembrar os tempos mais sombrios e difíceis da União Soviética", avalia Gruska.