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"Apoio que Bolsonaro acredita ter só está na cabeça dele"

21 de abril de 2020

Para o cientista político Humberto Dantas, da FGV, participação do presidente em ato pró-intervenção militar não pode ser aceita em "sociedade séria e democrática", e ditadura no país é improvável.

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Em cima de uma caminhonete, Bolsonaro discursou para manifestantes que pediam uma intervenção militar
Em ato em Brasília no domingo, Bolsonaro discursou para manifestantes que pediam intervenção militarFoto: Getty Images/AFP/E. Sa

O presidente Jair Bolsonaro voltou a provocar no último domingo (19/04) reações de repúdio de entidades, políticos e partidos ao comparecer a um ato pelo fim do isolamento social, pró-intervenção militar e de apoio ao seu governo. Em meio à pandemia de coronavírus, juntou-se a uma aglomeração de pessoas em Brasília e declarou que não fará acordos.  

Para o cientista político e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP) Humberto Dantas, a atitude de Bolsonaro de participar de um ato pró-intervenção militar constitui "um crime contra a mesma Constituição que o presidente jurou defender". 

Em entrevista à DW Brasil, o cientista político avalia, porém, que Bolsonaro não tem o apoio que acredita ter, e que um golpe orquestrado por ele é altamente improvável. 

Para Dantas, o cenário de declarações e atitudes que provocam "assombro" deve permanecer, a não ser que uma resposta concreta apareça – e ela pode vir com o resultado do exame para coronavírus do presidente, até hoje em segredo. 

Na semana passada, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados encaminhou à Presidência da República um pedido de informações a respeito dos resultados dos exames de Bolsonaro. 

"Se ele testou positivo [para covid-19], o fato de ele ter ido ao público ou mentido para a nação pode encerrar o governo dele", diz Dantas. 

DW Brasil: Como o senhor vê um presidente da República participando de um ato contra os poderes e a favor da intervenção militar? 

Humberto Dantas: Isso, levado ao cabo e aos olhos da Constituição, só pode ser interpretado como um crime contra essa mesma Constituição que esse mesmo presidente jurou defender. Algo desse tipo não pode ser aceito em uma sociedade que se pretende séria e democrática. As Forças Armadas não estão a serviço de um governo, mas sim de um Estado que tem um compromisso formal com a democracia. Esse sujeito, se avançar nessa percepção que ainda se mostra com base em sombras e nuances, terá que ser duramente punido. Não apenas com deposição, mas principalmente com prisão. 

Que cenários possíveis o senhor enxerga em relação ao futuro próximo de Bolsonaro? 

A mais incisiva questão está associada ao pedido do resultado do exame dele para covid-19 aprovado pela Câmara dos Deputados há alguns dias. Há que se considerar que muito provavelmente Bolsonaro passou pela doença, e não divulgou esse resultado, e sabia desse resultado antes de 15 de março, quando foi às ruas, se aproximou dos cidadãos, tirou foto. 

A partir disso, se ele acreditou no caráter pessoal do teste, ele esqueceu que era presidente da República e pouco conhece acerca do cargo que ocupa. Ele é o mais importante homem público do Brasil de acordo com a Constituição Federal. Ele não pode imaginar que vai ter certas privacidades as quais ele perdeu, e que boa parte dos agentes públicos não tem. 

A partir disso, se o resultado for positivo e ele reconhecer que foi positivo, ele arriscou a vida daquelas pessoas e vai ter aberto contra si um processo de impeachment. Se ele testou positivo e mentir para a Câmara, a mentira o derruba do mesmo jeito. 

Ele está se encurralando em seus discursos e atitudes. E isso nos leva a entender por que ele aumenta tanto o tom, porque ele não sabe ser de outro jeito e já percebeu que ultrapassou o limite do razoável. Está prestes a colocar seu mandato em risco pelo seu jeito de ser. O maior dos responsáveis pelo fim do seu governo será ele mesmo.

Esse pedido tem um prazo de 30 dias, certo? 

Trinta dias a partir da aprovação do pedido. E a Câmara está no uso de suas prerrogativas, porque tem a função de fiscalizar o poder Executivo, e fiscalizar o Executivo passa por questionar o titular do Executivo acerca de algumas de suas atitudes. Um pedido de informações dessa natureza me parece bastante razoável à luz do que se espera que seja uma Câmara fiscalizadora. O que nós não temos é uma Câmara fiscalizadora quando ela não está disposta a algum tipo de conflito. E é isso talvez que Bolsonaro esteja estranhando e esteja se defendendo, dizendo que está sendo chantageado. 

Mas, de forma nenhuma, a Câmara extrapola suas atribuições, muito pelo contrário: está agindo em benefício da sociedade brasileira, e principalmente daquelas parcelas que foram abraçadas pelo presidente. 

Bolsonaro já deu várias declarações que, para especialistas, se enquadram como crimes de responsabilidade. Até aqui, esses atos geraram notas de repúdio por parte de entidades, políticos e partidos. O senhor vê a possibilidade de uma reação mais dura agora? 

Eu acho que a reação mais dura não será pelo que ele tem feito nessa escalada dos últimos dias porque, em linhas gerais, o que ele argumenta é que não afrontou os poderes, não pediu o fechamento de nada e não pode limitar a liberdade de expressão das pessoas que estão nos eventos aos quais ele comparece, pedindo coisas que afrontam a democracia. 

Mas tenho para mim que, neste instante, ao contrário de 1964, ele não tem as Forças Armadas onde ele acha que elas estão, ele não tem parte da imprensa onde acharia que poderia estar, ele não tem a parcela da opinião pública onde imagina que poderia ter, e ele não tem nenhum controle sobre a agenda legislativa. 

Portanto, se Bolsonaro estiver se ancorando em apenas parcelas da sociedade para tentar algo mais incisivo contra a democracia, ele vai sofrer uma derrota significativa. A chance de ele terminar como Jânio Quadros e Fernando Collor é infinitamente maior hoje do que ele terminar como Castello Branco, assumindo a Presidência num golpe militar.

Eu não vejo isso acontecer, sobretudo porque, para os militares, em linhas gerais, seria infinitamente melhor ter um general no poder do que um capitão que foi praticamente expulso das Forças Armadas, com uma aposentadoria forçada e uma promoção pouco condizente com o serviço que ele prestou para o Brasil.

O senhor disse que uma reação mais dura não vem por meio dessa escalada de declarações. Esse cenário de declarações por parte do presidente, seguida por notas de repúdio, deve persistir? 

Eu tendo a acreditar que ele vai continuar, as notas de repúdio vão continuar, as pessoas vão continuar se assombrando com isso e que, se efetivamente há um desejo de que Bolsonaro seja afastado da Presidência da República (o que acho que se consolida com o tempo), há a necessidade de um fato concreto. A partir do fato concreto se abre um processo contra o presidente. 

A Câmara está cavando, então, um fato concreto ao pedir o exame? 

A Câmara cava isso de maneira muito clara ao pedir o exame. É a coisa mais clara até agora. O resto é interpretação de discurso. E a gente sabe que o discurso de Bolsonaro é completamente desequilibrado, mas é um discurso.

O fato concreto de ele ter testado positivo para a covid-19, se testou positivo, e ir ao público ou mentir para a nação, encerra ou pode encerrar o governo dele.  

A eleição de 2018 foi apenas e tão somente uma eleição que contratou um presidente da República para viver sob os limites da regra, e Bolsonaro tem para ele que foi ungido imperador do país. Ele tem limite, a fala dele tem limite, as atitudes dele têm limite. Ele não entendeu isso até agora.  

O senhor acha que ele não entendeu que tem limite, ou é uma escolha dele entrar nesse embate? 

A sensação de ser eleito é uma sensação perigosíssima, a mais perigosa do regime presidencialista. E Bolsonaro se deixa levar por isso de maneira assustadora. 

Perceba que isso só ocorre quando o partido é fraco e quando essas pessoas chegam aonde chegam sem nenhum filtro partidário: Jânio Quadros, Fernando Collor, Jair Bolsonaro. É um clássico. A pessoa, quando é maior que o partido, tende a cair em armadilhas. 

É veiculado de forma recorrente que os militares se incomodam com certas atitudes e declarações do presidente. Neste domingo, isso aconteceu de novo. A ala militar está incomodada? 

A gente fala em ala militar como se fala em evangélicos. Não é uma massa homogênea, existem militares de esquerda, por exemplo. Mesmo que o mundo militar seja um mundo de rigor hierárquico, são brasileiros e demonstram diferentes percepções acerca de diferentes fenômenos. 

Uma segunda coisa que precisa ser colocada: existe uma subclasse dentro dos militares extremamente bem preparada tecnicamente, que entende de políticas públicas. E existe um pedaço desse universo que respeita a democracia e sabe que as Forças Armadas são uma força de Estado e não de governo. Portanto, eles não estão a serviço de Bolsonaro. E Bolsonaro tem constrangido muito os militares nesse sentido. 

Para completar, precisamos lembrar que seu vice é um general, e hierarquia por hierarquia, preparo por preparo, a despeito de [Hamilton] Mourão ser, para a imensa maioria, um ilustre desconhecido, para o universo militar seria, para alguns, muito mais interessante ter um Mourão na Presidência que um Bolsonaro. 

O presidente ainda mantém uma parcela fiel de eleitores, e parte dela inclusive fez neste domingo uma carreata a favor dele. O que explica esse apoio? 

Uma militância cega e apaixonada por um personagem que foi criado na figura de um mito, e que faz com que as pessoas o adorem por tudo que ele diz representar: combate à corrupção, antipetismo, um apego questionável a valores cristãos – questionável porque o ódio do discurso dele passa anos-luz do que um cristão prega. Bolsonaro conseguiu, com sua violência, conquistar a simpatia de parcelas de uma sociedade que é extremamente violenta.  

A democracia está ameaçada no Brasil? Até que ponto as instituições estão funcionando? 

Mais uma vez, vamos passar por um teste de estresse, e o teste é: se for aberto qualquer procedimento contra Bolsonaro com o objetivo de tirá-lo do poder, por uma razão técnico-política, vamos tentar entender até onde esse sujeito que jurou a Constituição e que diz ser a Constituição é efetivamente capaz de lidar com a Constituição e com os instrumentos democráticos e institucionais formais. 

Portanto, há risco? Risco há todos os dias de tudo acontecer. É nítido o risco? Eu tenho para mim ainda que o temor a Bolsonaro é mais um reflexo dos traumas trazidos por um regime ditatorial e por um presidente convicto demais e falastrão ao extremo, do que propriamente [estar associado a] saídas institucionais que ele possa tomar e nos levar para uma ditadura. Isso eu acho muito improvável de acontecer. Mas, em algum instante podemos ter um risco maior de enxergar coisas dessa natureza. Só na cabeça dele ele tem o apoio que ele imagina ter. As pessoas elegeram um presidente, e se ele começar a se comportar como um ditador, vai perder ainda mais pessoas nesse grupo que o apoia. 

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