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No aniversário do golpe no Chile, ditaduras ainda dividem América do Sul

Fernando Caulyt11 de setembro de 2013

Após 40 anos do golpe militar de Augusto Pinochet contra Salvador Allende, chilenos ainda têm dificuldades de lidar com passado, que influencia campanha presidencial. No Brasil e na Argentina, assunto é controverso.

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Protesto realizado no Chile em 8 de setembro lembrou os 40 anos do golpe militar chilenoFoto: Sebastian Silva/AFP/Getty Images

As ruas da capital chilena Santiago amanheceram com bloqueios nas ruas e 68 prisões nesta quarta-feira (11/09), dia em que são lembrados os 40 anos do golpe militar de Augusto Pinochet, que depôs o então presidente Salvador Allende em 1973. Manifestantes interromperam o trânsito de veículos em bairros abastados e periféricos da capital, para onde milhares de policiais foram enviados pelo governo de Sebastián Piñera.

"São dias difíceis, em que pessoas violentas tentam se aproveitar da situação", disse nesta quarta o ministro do Interior, Andrés Chadwick, antigo aliado de Pinochet. Por outro lado, Chadwick descreveu que, "até o momento, o balanço é muito positivo em relação ao que se esperava." Atualmente, Chadwick condena os crimes cometidos durante a ditadura.

O regime militar chileno, um dos mais duros da América Latina e que causou a morte ou desaparecimento de mais de 3.200 pessoas e 38 mil vítimas de tortura e durou até 1990, deixou feridas que até hoje polarizam a sociedade e impactam na atual campanha presidencial e legislativa do país.

Quando o assunto é julgar os crimes cometidos em regimes militares e acertar as contas com o passado, Chile, Argentina e Brasil lidam de forma diferente com as feridas causadas pela ditadura, apesar de os três países terem dificuldades. Enquanto o processo está mais avançado na Argentina e no Chile – onde alguns responsáveis foram julgados e punidos –, especialistas ouvidos pela DW dizem que o Brasil não avançou muito no processo de investigação dos responsáveis e na reparação das famílias dos mortos e torturados pela ditadura militar (1964-1985).

"São três maneiras diferentes de se lidar com as feridas da ditadura, mas os três têm o desafio de compreender o que aconteceu no passado", afirma a professora de história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Heloísa Starling. "A Argentina avançou muito no sentido se recuperar a memória. No Chile, a sociedade até hoje está muito dividida em torno da herança do regime militar. No Brasil, a ideia da Comissão da Verdade foi tardia e teve que esperar por 40 anos", avalia.

Para os analistas entrevistados pela DW Brasil, a forma como esses países lidam com o passado depende dos processos de construção da ditadura e, também, de como se realizou a transição entre o regime militar e o período democrático. Chile e Argentina tiveram um processo mais violento e uma ruptura muito forte entre sociedade civil e regime militar.

Já no Brasil, a transição foi negociada entre a elite política e os militares e foi instituída a Lei da Anistia – que concedeu "perdão político" não só a presos, torturados e exilados, mas também a torturadores e assassinos que trabalharam a serviço do regime.

"O exército argentino foi desmoralizado depois de perder a Guerra das Malvinas [para a Grã-Bretanha, em 1982]. A sociedade organizada conseguiu impor políticas para a denúncia dos crimes cometidos pelo regime e a punição dos responsáveis. No Chile, houve um processo de transição muito tenso e que polarizou fortemente a sociedade depois da derrota do regime militar por um plebiscito provocado pelo próprio governo", diz o professor de Ciências Políticas da Unicamp, Valeriano Costa.

"No Brasil, o processo foi mais longo. Ele começou em 1974 e foi até 1984. A partir daí, começou-se um processo de transição mais efetivo", afirma.

Eleições chilenas são marcadas pela herança do regime militar

Mesmo depois de 23 anos de democracia, a população chilena vai às urnas em 17 de novembro ainda dividida pela herança do regime militar. A grande influência do golpe está relacionada com o fato de Pinochet ter permanecido no comando do Exército até 1998, ano que assumiu como senador vitalício – o que causou muita divergência entre a população chilena.

Augusto Pinochet
O ex-ditador chileno Augusto Pinochet morreu em 2006Foto: picture-alliance/dpa

Somente a detenção de Pinochet em outubro de 1998, em Londres, por ordem do juiz espanhol Baltasar Garzón, que emitira um mandado de busca e apreensão internacional acusando o ex-ditador de crimes de genocídio, terrorismo e torturas, conseguiu diminuir a influência do assunto na sociedade chilena. E, coincidência ou não, somente depois da morte do general em 2006 os julgamentos relacionados aos direitos humanos avançaram, com centenas de processados e a descoberta de centros de extermínio até então desconhecidos.

De acordo com especialistas, até hoje o país não alcançou um consenso social ou institucional sobre o golpe de Pinochet sobre o primeiro marxista eleito pela população no Chile, Salvador Allende. A divisão é refletida na corrida eleitoral entre Michelle Bachelet, que governou o país de 2006 a 2010, e Evelyn Matthei, ex-ministra da Saúde do atual presidente Sebastian Piñera.

O assunto é tão presente no país que até mesmo a Associação Nacional dos Magistrados do Poder Judiciário pediu perdão, na semana passada, pela "omissão" durante a ditadura de Pinochet (1973-1990). Essa foi a primeira vez que ministros, desembargadores e juízes reconheceram suas falhas. Durante o regime militar, houve cerca de 5 mil pedidos de proteção para desaparecidos ou pessoas detidas ilegalmente que, na época, foram rejeitados pelos tribunais chilenos.

Argentina foi pioneira no julgamento de militares

A Argentina foi um dos países pioneiros na América Latina a julgar as juntas militares pelos crimes cometidos durante períodos ditatoriais no país. O quarto período autoritário na Argentina aconteceu entre 1966 e 1973, quando o país foi governado, sucessivamente, por Juan Carlos Onganía, o general Roberto Marcel Levingston e o general Agustín Lanusse.

A quinta ditadura militar argentina teve início em 1976, quando o general Jorge Rafael Videla derrubou o governo democrático da presidente Isabel Perón. Pelo menos nove mil opositores foram mortos ou desapareceram até o fim do regime militar, em 1983.

Por sair deslegitimado pela população após perder a Guerra das Malvinas e pelo fracasso das políticas econômicas, o governo militar argentino não conseguiu garantir, durante a transição política, a lei da anistia – que foram garantias dadas em outros países aos militares e civis envolvidos em torturas e mortes de oponentes ao regime.

E foi neste momento em que presidentes, generais e outros militares foram levados aos tribunais, de acordo com a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Maria Paula Araújo, em artigo publicado na Revista de História, em agosto de 2010.

Argentinien Putsch 1976
O general Jorge Rafael Videla (c), que governou a Argentina entre 1976 e 1981Foto: AP

No final de 1985, no governo de Raúl Alfonsin, alguns dos principais chefes das juntas militares foram julgados e condenados por crimes contra os direitos humanos durante a ditadura.

"Entre eles estavam os generais Jorge Videla e Eduardo Viola, os almirantes Massera e Lambruschini e o brigadeiro Ramón Agosti. No entanto, ficaram pouco tempo na prisão, pois todos foram perdoados pelo presidente Carlos Menem em 1990”, escreve Araújo em seu artigo "Passado criminoso". Ela diz, ainda, que a Argentina avançou neste campo mais do que qualquer outro vizinho latino-americano.

A Argentina vivenciou, ainda, uma discussão em torno das chamadas "leis de impunidade" – a Ley de Punto Final, de 1986, e a Ley de Obediencia Debida, de 1987. A primeira tentava paralisar os processos judiciais em nome da reconciliação nacional. A segunda declarava que os militares não graduados não poderiam ser responsabilizados por crimes que tivessem cometidos, obedecendo ordens de seus superiores.

Porém, em junho de 2005, a Suprema Corte de Justiça declarou que elas eram constitucionais depois de sofrer pressão da sociedade e organizações de direitos humanos.

A polarização da sociedade chilena não é, porém, espelhada na sociedade argentina. "O governo militar argentino saiu profundamente deslegitimado da ditadura, já no Chile não, de forma que são encontrados neste país sistemas políticos que defendem a ditadura militar, enquanto que na Argentina não é encontrado nenhum grupo sério ou relevante que defenda a ditadura", afirma Matias Franchini, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB).

Comissão da Verdade no Brasil não tem caráter punitivo

De acordo com especialistas, o Brasil, apesar de oferecer medidas reparadoras como o pagamento de indenizações e pensões para as famílias de mortos e torturados, tem uma dívida muito grande no que diz respeito à punição na Justiça dos responsáveis por mortes e torturas, por causa da Lei da Anistia instituída no final da ditadura militar, em 28 de agosto de 1979.

Apesar de ter sido uma vitória parcial da sociedade e dos grupos que lutavam pela redemocratização do país, a legislação representou também uma vitória dos militares e da classe dirigente, já que, segundo Araújo, da UFRJ, "aprovou uma anistia limitada, isentando-os da apuração das responsabilidades e dos crimes cometidos pelas forças policiais ligadas ao regime."

Dilma Rousseff
Dilma Rousseff sancionou a lei que criou a Comissão da Verdade em 2011Foto: Evaristo Sa/AFP/Getty Images

Apesar das limitações, ela foi uma das leis mais importantes para a mudança política do país, já que permitiu a libertação de prisioneiros políticos, o retorno de exilados e banidos e a saída da clandestinidade de inúmeros militantes contra a ditadura.

A Comissão da Verdade foi sancionada pela ex-guerrilheira e atual presidente Dilma Rousseff em novembro de 2011 para apurar as violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 – período que inclui a ditadura militar. O grupo tem o objetivo de ouvir depoimentos em todo o país, requisitar e analisar documentos que ajudem a esclarecer as violações de direitos. O grupo aproveita informações produzidas de outras duas Comissões – a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e pela Comissão de Anistia.

"A Comissão da Verdade não tem natureza punitiva", afirma Starling, da UFMG. "O que se supõe é que, a partir das revelações feitas pela Comissão, seja possível a mobilização e pressão da sociedade para que o Superior Tribunal Federal (STF) reveja a Lei da Anistia. Por isso é importante que a Comissão divulgue os resultados para que possa refletir na capacidade de mobilização da população."