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Jornalistas denunciam assédio, censura e retaliações na EBC

Gabrielle Bittelbrun
30 de setembro de 2022

Profissionais da emissora pública brasileira relatam ingerência do governo Bolsonaro no jornalismo, assédio moral e ameaças de demissão de jornalistas.

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Prédio da Empresa Brasil de Comunicação (EBC)
Um dossiê elaborado por funcionários da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) em agosto registrou 292 denúncias de ingerência do governo e de censuraFoto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil/EBC

Reportagens barradas, transferências arbitrárias de setor, intimidação, desvalorização do trabalho. Um dossiê elaborado por funcionários da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) em agosto registrou 292 denúncias de ingerência do governo e de censura. A proximidade das eleições tem deixado a situação mais tensa na empresa, que detém canais como a Agência Brasil, a TV Brasil e a Rádio Nacional.

Depoimentos de profissionais ouvidos pela DW indicam retaliação a quem denuncia assédio moral, e já são três as sindicâncias abertas contra trabalhadores por causa de direitos trabalhistas. O caso mais emblemático é o da jornalista Kariane Costa, que de denunciante de irregularidades passou à denunciada em sindicância interna e agora está com o emprego ameaçado.

Contratada por meio de concurso público em 2012, Costa foi eleita representante dos empregados no Conselho de Administração da EBC. Em 2021, depois de receber relatos de assédio moral por parte de diretores da estatal contra funcionários, a jornalista enviou um e-mail à ouvidoria da EBC, pedindo esclarecimentos. O e-mail vazou, e Costa foi denunciada em sindicância interna, sob a acusação de que estaria atacando os 12 gestores que constavam no pedido inicial de apuração.

"Em julho deste ano, eles me entregaram um processo de mil páginas e disseram que fui a única indiciada. A denúncia contra os gestores foi arquivada", afirma Costa. Além do pedido de demissão da jornalista por justa-causa, o documento sugere o treinamento e capacitação dos funcionários, "em especial daqueles lotados na Diretoria de Jornalismo, para a obtenção de conhecimento e melhor entendimento dos normativos internos e procedimentos administrativos da empresa", entre outras recomendações.

Agora, o setor jurídico e a presidência do órgão podem decidir ou não pela demissão de Costa. Seis gestores também fizeram uma interpelação criminal contra a jornalista, mas o caso foi arquivado em agosto, antes de ir para a Justiça.

Para a coordenadora geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal, Juliana Cézar Nunes, a tensão na empresa se intensifica. "A dinâmica dentro das redações sempre foi muito dura, mas transformar isso em processos de sindicância é algo que veio mais forte com as eleições", considera. Segundo ela, há uma prática institucionalizada de assédio moral dos profissionais na empresa.

A DW entrou várias vezes em contato com a EBC para obter uma posição sobre o tema, mas não recebeu retorno.

Dia da batata frita e negação da ditadura militar

Os profissionais denunciam, no dossiê e para a DW, interferência de gestores da estatal para que houvesse a omissão, nos veículos da EBC, de assuntos negativos para o governo Jair Bolsonaro, como índices da economia ou relacionados à pandemia. Também relatam a transferência de setor daqueles que se posicionam contra o governo e contra uma cobertura jornalística que nega a ditadura militar e os benefícios da vacinação contra a covid-19.

A equipe também é pautada para fazer matérias de assuntos irrelevantes, sem valor jornalístico, descaracterizando o propósito da EBC. Entre essas pautas estão, por exemplo, o dia da batata frita.

"Infelizmente um veículo de comunicação que deveria ter uma prática editorial com participação dos trabalhadores e da sociedade se configura como um dos locais de maior aparelhamento e militarização", afirma Nunes, destacando o aumento dos casos de afastamento na estatal.

Em relatório encaminhado ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, a Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, formada por entidades, jornalistas e pesquisadores, detalha que 17% dos funcionários estão afastados por questões de saúde mental.

A EBC foi condenada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 10ª região a pagar R$ 200 mil em março, por danos morais coletivos, pelas denúncias de assédio moral. Neste mês, o Ministério Público do Trabalho também recomendou a imediata suspensão de todos os processos administrativos disciplinares envolvendo profissionais que tenham relatado à empresa ou ao Poder Judiciário possíveis situações de assédio moral.

Sem autonomia desde o início

A premissa de autonomia da EBC, criada em 2007, nunca se cumpriu. Com o objetivo de equilibrar uma visão pautada pelo mercado e uma visão de natureza pública, a EBC pretendia seguir modelos europeus de empresas públicas de comunicação, a exemplo da BBC e da Deutsche Welle, nas quais não há ingerência de governos.

A estatal foi pensada sob dois eixos: "Como uma comunicação pública submetida a um conselho curador formado por representantes da sociedade, e como uma prestadora de serviços de comunicação estatal para o governo", explica Lincoln Macário, diretor da ABCPública.

A proposta era de que a EBC tivesse um orçamento próprio, vindo do Fundo de Fiscalização de Telecomunicações (Fistel), recebendo uma verba complementar do governo ao atuar como uma espécie de produtora de comunicação estatal. Mas a verba própria foi inviabilizada, pois as operadoras de telecomunicações se opõem à taxa, o que relegou a EBC à dependência financeira do governo.

A interferência do Poder Executivo fez com que, logo no início, a emissora fosse chamada de "TV Lula". Nos anos seguintes, o governismo se intensificou. Uma medida provisória de 2016, do governo Temer, extinguiu o conselho curador que tinha participação da sociedade civil e fiscalizava a programação das emissoras da EBC e a linha editorial.

Em 2018, antes das eleições, Bolsonaro chegou a sinalizar a privatização da EBC. Mas isso não se concretizou. Sob a alçada do atual presidente, em 2019, a programação da TV Brasil, canal da EBC, foi unificada com a da TV NBR, de atuação estatal, e as duas passaram a operar num único canal.

Na prática, isso criou uma influência ainda maior do Executivo. "Sentimos interferências no conteúdo, no jornalismo, nas coberturas desde 2016. E, desde 2019, desde essa unificação, isso piorou muito", destaca Akemi Nitahara, jornalista da EBC e integrante da Comissão de Empregados da EBC.

Informações falsas 

O dossiê coordenado pela comissão de empregados da EBC registra a transmissão de 274 eventos do governo de agosto de 2021 a julho de 2022, ocupando a grade da TV pública.

O TSE determinou em agosto que a emissora retirasse do ar  encontro em que Bolsonaro propagou informações falsas sobre urnas eletrônicas, evidenciando o tom político do que é apresentado.

"Hoje a estatal é apropriada pelo governo de forma a só tratar do que o governo quer", ressalta Macário.

E os investimentos seguem altos. Só neste ano, já foram cerca de R$ 350 milhões de despesas executadas do orçamento com a EBC, segundo o Portal Transparência.