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"Isto aqui é uma tortura"

29 de agosto de 2018

Reduzir a maioridade penal agravaria a situação das superlotadas prisões brasileiras? Em tempos de eleições, lembrei-me da conversa que tive com um detento, segundo o qual presídios afundam o país na criminalidade.

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Prisão no Brasil
Número de presos no Brasil aumentou de 90 mil em 1990 para quase 727 mil em 2016Foto: picture alliance / dpa

Caros brasileiros,

Ainda me lembro daquele aperto de mão quente e firme. Senti calor humano. Fechei os olhos, rezei. Aconteceu um milagre: poucos segundos de paz numa roda ao lado de criminosos de alta periculosidade.

Foi no dia 14 de Janeiro de 1994, na prisão de segurança máxima Bangu 1, no Rio de Janeiro. Durante a prece, pensei em mil coisas. Pedi a Deus que acabasse com aquele sofrimento, que diminuísse o inferno lá dentro. E pedi para sair inteira daquele lugar.

A jornalista Astrid Prange
A jornalista Astrid Prange foi correspondente no BrasilFoto: DW/P. Böll

De repente, um "aleluia!" eufórico quebrou a conversa curta com Deus e espantou os meus pensamentos. A exclamação foi feita por Washington de Souza, pastor da Igreja Evangélica Assembleia de Deus. Os presos não se assustaram, pareciam já estar acostumados com o jeito do pastor, que vinha toda semana.

A linguagem dele se adaptou perfeitamente ao ambiente carcerário. "A fé em Deus é igual à fé na arma: quem aperta o gatilho, acredita que a bala sai", disse ele. Os detentos acreditavam. Muitos se converteram na prisão, na esperança de mudar de vida.

Um deles foi William da Silva Lima. Ele estava ao meu lado rezando, tinha voltado recentemente para a prisão depois de mais uma fuga. Parecia desesperado e desiludido. Depois do culto, ele me puxou para o lado, fixou meu olhar e disse: "Isto aqui é uma tortura."

Logo depois, ele me deu um livro, que ele mesmo escreveu: Quatrocentos contra um: uma história do Comando Vermelho. Só então entendi quem era ele. Antes do fim da visita, o fundador do Comando Vermelho assinou o livro para mim: "A Astrid, com carinho, leia e seja um astro de Jesus."

Hoje, 24 anos depois, não esqueci aquele olhar. Não esqueci as grades que abriam e fechavam, o portão enorme de saída que se fechou atrás de mim quando deixamos a prisão, e a sensação de alívio, o respiro profundo de ar de liberdade.

Capa do livro de William da Silva Lima e dedicatória na primeira página
Capa do livro de William da Silva Lima e dedicatória na primeira páginaFoto: DW/A. Prange

Desde então, a cada rebelião, a cada motim num complexo penitenciário no Brasil, e também com a recente prisão de Lula em Curitiba, sempre me lembro dessas palavras: "Isto aqui é uma tortura."

E essa tortura persiste e aumenta. Segundo as estatísticas do Departamento Penitenciário Nacional (Infopen), o número de presos no Brasil aumentou de 90 mil em 1990 para quase 727 mil em 2016. E com isso também aumentaram a superlotação e a degradação humana nos presídios.

É assustador! Tão assustador que o combate à violência é sempre um dos temas mais importantes nas campanhas eleitorais, como tem sido na atual. Chama-me atenção o fato de os candidatos que querem reduzir a maioridade penal não explicarem como e onde irão arrumar espaço parar encarcerar os próximos jovens infratores. Nas celas já superlotadas?

A experiência de William mostra que a fé em Deus pode até ajudar a suportar o dia a dia cruel atrás das grades. Mas fora delas, a fé é outra. No Congresso Brasileiro, por exemplo, a fé da bancada evangélica parece andar junto com a crença de que violência se deve combater com violência, como mostra a tramitação de uma proposta de redução de idade penal (PEC 171/93) na Câmara dos Deputados.

Será que os protagonistas dessa proposta leram o livro Quatrocentos contra um? A partir dos relatos de William, os legisladores poderiam vislumbrar as consequências da medida tão desejada por eles: "Nossas prisões fabricam novos criminosos e nos afundam todos na criminalidade. Triste é o destino de uma instituição que, quanto mais fracassa, mais necessária se torna", escreveu William. Só um milagre mesmo para evitar isso.

Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter: @aposylt e na internet: astridprange.de

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