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Fome e segurança

13 de novembro de 2011

Em 2050, será preciso alimentar 9 bilhões de seres humanos. Especialistas temem que a produção de gêneros alimentícios não mais acompanhe o crescimento demográfico: conflitos podem ser a consequência.

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Somaliano busca comida no lixoFoto: AP

Diante das revoltas dos famintos em Paris e Londres, no final do século 18, o pastor e economista inglês Robert Malthus desenvolveu a teoria segundo a qual a Terra, com seus recursos limitados, só seria capaz de alimentar um número limitado de pessoas. Caso a população humana ultrapassasse esse limite, ela sofreria redução, através de ondas de fome, pestes ou guerra.

Marcus Tullius Cicero Porträtbüste
No século 1º, Cícero já relatava revoltas de fome em RomaFoto: picture alliance/dpa

Desde a Antiguidade, as revoltas causadas pela fome são um fenômeno recorrente. No ano 57 a.C., o estadista e filósofo Marco Túlio Cícero registrava os ferozes protestos em Roma devido ao aumento drástico do preço do pão. "Reinava uma inflação aguda e a fome ameaçava. E, como se não bastasse, ocorreram apedrejamentos."

Nos anos seguintes, depois de nada menos de oito grandes crises de fome em Roma, os imperadores adotaram medidas preventivas. Os cereais egípcios passaram a ser monopolizados, servindo principalmente ao abastecimento da Itália e da capital. Assim, os soberanos preveniram novos levantes e asseguraram seu poder político.

Cidade e campo

Ainda hoje, as elites estatais dos países em desenvolvimento procedem de forma semelhante, analisa Wolfgang Heinrich, especialista em agricultura do Serviço de Desenvolvimento da Igreja Luterana alemã (EED). "Os governos tendem a pacificar a zona urbana o máximo possível, através de preços subsidiados, subvenções à importação de trigo, etc. Isso absorve um volume relativamente grande de recursos. Nas zonas rurais, pelo contrário, os governos tendem a reagir aos levantes com métodos repressivos."

Esse fenômeno se manifestou pela primeira vez em escala global neste século durante a crise de alimentos de 2008. Na África, partes da Ásia e no Caribe aconteceram as chamadas "rebeliões da fome". Por vezes, elas abalaram os governos locais; por outras, foram utilizadas por certos grupos como arma política na luta interna pelo poder.

Professor Joachim von Braun
Joachim von Braun, do Centro de Pesquisa de Desenvolvimento, sediado em BonnFoto: ZEF

Joachim von Braun, diretor do Centro de Pesquisa de Desenvolvimento (ZEF), em Bonn, comenta: "Segundo nossos estudos, durante a crise dos preços dos alimentos de 2008, houve mais de 50 casos de agitações e manifestações, que também acarretaram mudanças de regime. Foi uma experiência inédita."

Esses levantes assustaram os líderes políticos do mundo. Há alguns anos, o tema também é discutido dentro da ONU e do G20, "pois, na atual situação de preços altíssimos, o conflito continua – ainda que não em escala de massa, como foi o caso em 2008", explica Von Braun.

O pão e a Primavera Árabe

Por volta 2050, a população humana do planeta deverá chegar aos 9 bilhões e essas pessoas terão que ser nutridas. Especialistas temem que a produção de gêneros alimentícios não mais acompanhe o crescimento demográfico e a consequência poderá ser uma onda de conflitos.

Do ponto de vista científico, é bastante difícil provar uma relação direta entre carência de recursos e conflitos. Teoricamente, qualquer concorrência adicional pela obtenção de recursos pode levar a choques locais violentos, em países e regiões que já sejam politicamente frágeis.

Mas geralmente a fome ou a escassez de alimentos são apenas um entre diversos fatores, afirma Steffen Angenendt, coautor de uma pesquisa realizada pelo Instituto Alemão de Relações Internacionais e Segurança (SWP) sobre o potencial de conflito gerado pela falta de matérias-primas. É preciso que também haja injustiça na distribuição ou um governo ruim, para que "uma carência seja transformada em problema social e, portanto, também de segurança".

Porém, nesse caso, os protestos devido à alta dos preços da comida também podem culminar em aversão ao governo vigente. Foi assim que as passeatas contra o ditador tunisiano Zine el-Abidine Ben Ali começaram: como protesto contra o encarecimento da bisnaga, antes que se colocasse em questão o sistema, em si.

"No entanto, na Primavera Árabe essas passeatas pelo pão foram sobretudo simbólicas", observa o especialista em desenvolvimento Von Braun: "Elas serviram como estopim para as manifestações, numa complexa situação de conflito político. Ou seja, foram apenas um dos motivos da insatisfação".

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Guerra na SomáliaFoto: AP

Sem meios nem direitos

Sérios protestos em torno do preço dos gêneros alimentícios ocorrem mais frequentemente em países com renda bem inferior à da Tunísia. Porém, o papel desses protestos é cada vez mais importante. Como, por exemplo, na Etiópia, onde, segundo a Constituição, a terra pertence ao Estado. E este arrenda grandes áreas aos investidores internacionais. Para os pequenos agricultores, isso significa muitas vezes a perda da fonte de subsistência.

Na qualidade de perito agrário do EED, Wolfgang Heinrich conhece bem a situação in loco. "O governo etíope não tomou nenhuma medida para prevenir o que acontecerá com os pequenos agricultores, agora forçados a ceder suas lavouras para dar lugar a grandes fazendas mecanizadas". Segundo o Serviço Luterano de Desenvolvimento, já ocorreram vários levantes locais.

No Quênia e em Uganda, o arrendamento ou venda de grandes terrenos a investidores agrícolas estrangeiros também revolta os atingidos. Pesquisas da organização Oxfam demonstram que, entre 2006 e 2010, pelo menos 22.500 pessoas dos distritos ugandenses de Mubende e Kiboga perderam suas terras para a madeireira britânica New Forests Company (NFC).

Muitas das vítimas queixaram-se ainda à organização humanitária de terem sido expulsas através de violência e de estarem privadas de recursos financeiros. "Encontramos vários casos de land grabbing", aponta Marita Wiggerthale, especialista da Oxfam para assuntos agrários. "Isto quer dizer que os investidores ignoram os direitos e necessidades dos pobres que cultivaram a terra e viviam de seus frutos. Estes perdem sua moradia e seu meio de subsistência, sem terem sido antes consultados ou ressarcidos, e sem poderem se opor aos contratos."

Celeiro do terrorismo

Uma postura radical não é rara entre esses insatisfeitos, que se constituem, assim, potenciais adeptos para os grupos terroristas islâmicos. Nos últimos anos, estes intensificaram suas atividades justamente no Chifre da África, explica Heinrich, conhecedor da Etiópia, ao observar que, "no norte do Quênia, se trata de grupos relacionados ao conflito na Somália".

Wolfgang Heinrich
Wolfgang Heinrich, do EEDFoto: DW

Ele acrescenta que a forma como a comunidade internacional tem lidado com esse conflito nos últimos 20 anos "fez com que os protagonistas da guerra na Somália se interconectassem em nível internacional, desde 2006, estabelecendo relações de cooperação com as células da Al Qaeda".

É raro as próprias vítimas da fome recorrerem às armas: o mais frequente é elas se deslocarem, na busca de comida. No continente africano, a acolhida e integração duradoura dos refugiados da fome levam constantemente a problemas de distribuição – fato que gera novos conflitos, com potencial para confrontações violentas.

Pesca descontrolada e os piratas africanos

Vale a regra básica: quem não consegue mais nutrir sua família pelos meios tradicionais, busca saídas para o dilema da fome. Assim, segundo especialistas em desenvolvimento, a pirataria no Chifre da África teria sua origem na pesca descontrolada na costa da Somália por frotas pesqueiras internacionais. Hoje, ela resultou num modelo de negócios para bandidos, exigindo combate através de operações militares de alto custo, como a Missão Atlanta.

Mas a situação pode piorar ainda mais, adverte o encarregado especial da União Europeia para a Somália, Georges-Marce André. "Por sorte, até agora a pirataria no Chifre da África não tem caráter político, e torcemos para que permaneça apenas um negócio. Imagine só: se todos os navegantes que são agora reféns dos piratas por motivos econômicos fossem reféns políticos! Não dá nem para imaginar o que aconteceria se os terroristas da Al Qaeda ou do Al Shabab explodissem no litoral de Mombasa um petroleiro capturado".

A maioria dos especialistas concorda que, apesar de todas as projeções negativas, guerras por alimentos não deverão ocorrer no futuro próximo. Mas Joachim von Braun prevê que a insegurança no abastecimento alimentar irá gerar cada vez mais consequências para a política global de segurança. "A migração e os conflitos pela posse da terra se agravarão de tal forma, que levarão à desestabilização de províncias e governos. E como o mundo está interconectado, essas situações de conflito se refletirão em problemas de política de segurança", conclui.

Autor: Daniel Scheschkewitz (av)
Revisão: Soraia Vilela