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Entre a manga e a uva

12 de abril de 2010

Professor da Universidade Federal de São João del Rei fala sobre como o debate sobre uma 'língua nacional' no Brasil refletiu a forma como o país lida com suas raízes e trata seus diferentes legados étnico-culturais.

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João Paulo RodriguesFoto: DW

Deutsche Welle: A partir de quando a questão da língua passou a ser discutida sistematicamente no Brasil?

João Paulo Rodrigues: A questão da "língua nacional" no Brasil tornou-se mais importante em meados do século 19. Pesquisei o período entre 1840 a 1930, tomando todo o panorama de discussões relativas a língua e linguagem, e tentei relacionar isso com as ideias do período sobre a formação da nação, sobre nacionalismo, nacionalidade.

Tentei mostrar que esse foi um debate que perpassou a intelectualidade, tendo sido particularmente forte na literatura, mas que perpassou também o pensamento social, o folclore, a historiografia. Esse debate tentou responder questões que outras vertentes do pensamento tentavam responder: o que fazia do Brasil uma nação, quais eram suas raízes históricas e quais as possibilidades de o Brasil se tornar uma nação civilizada?

Os historiadores têm relacionado esse debate com as questões do racismo científico, com o pensamento racial no Brasil, com uma tentativa de dar conta da mestiçagem, das influências africanas e indígenas. Tentei trazer à tona que algumas questões parecidas, que estavam por trás do racismo, também eram perceptíveis na questão da língua, só que ensejaram respostas bastante diferentes.

Trauben Früchte
Foto: AP

Você pode citar exemplos concretos?

Quando essa questão da língua surge, ela está muito ligada ao indianismo, ao lugar do índio na nação, ao início de uma etnologia brasileira na literatura e em certos tratados sobre a questão do índio: o que fazer com ele, como tratá-lo. As preocupações estavam muito determinadas por uma noção sobre a composição étnica dos índios do Brasil, que por sua vez dependia muito de uma tradição sobre o entendimento das línguas indígenas.

Nesse período, José de Alencar, Gonçalves Dias, Francisco Adolfo Varnhagen – um historiador brasileiro de origem alemã, extremamente importante em meados do século 19 – e outros, debateram as origens étnicas dos índios brasileiros e o legado deles para a nação, em termos linguísticos.

O legado indígena foi um aspecto muito importante nas obras desses autores. Nos romances indianistas de José de Alencar, por exemplo, existe uma espécie de subtexto: ele incorpora palavras supostamente de origem indígena, que eram na verdade apropriações de palavras de origem tupi.

Os romances dele são uma espécie de dicionário das línguas indígenas. Numa polêmica com autores portugueses, ele vai ser um dos que vai defender que existiria uma língua brasileira ou que poderia haver uma língua brasileira no futuro, calcado nessa ideia da incorporação das línguas indígenas.

José de Alencar foi então o primeiro a apostar numa "língua brasileira"?

Ele não usava ainda a expressão língua brasileira, que surgiu depois e se tornou realmente popular nos anos 1860. Os primeiros romances indianistas de Alencar são dos anos 1850. É a partir de 1870 que isso foi ficando mais presente. Esse termo vai indo e voltando até os anos 1930, a partir dos quais ninguém mais vai defender a importância de uma língua brasileira.

Mas, mesmo sem utilizar o termo, José de Alencar deu essa base de que haveria aqui uma língua brasileira. Ele usa uma metáfora que ficou muito famosa num texto de resposta a portugueses, que criticaram a inclusão de palavras indígenas e tentativas de mudança da sintaxe em romances como O Guarani e Iracema.

Ele responde dizendo que fazia isso porque a literatura é um veículo de renovação da língua, e que os termos indígenas, de certa forma, expressariam a maneira de os brasileiros falarem. Alencar dizia que o país que chupa a manga e que come o abacaxi (frutas tropicais), não poderia falar a mesma língua de um país que sorve a uva e a nêspera (frutas europeias).

Na verdade, ele não foi o primeiro a falar disso. O próprio Gonçalves Dias incorporava, em seus poemas, essa ideia de uma linguagem indígena que alterava a linguagem brasileira. E há outros românticos desse mesmo período que também defendiam que, pelo menos a língua literária brasileira, seria calcada numa influência indígena e teria outra sintaxe, com palavras diferentes da língua portuguesa falada em Portugal.

Mango Früchte
Foto: AP

Essa autonomia linguística esteve em algum momento associada à ideia da independência do Brasil de Portugal ou foi algo que se deu completamente à parte?

Pode-se dizer que havia, a partir dos anos 1830, indícios de preocupação com essa questão da língua, só que se falava da chamada "língua nacional" e não de língua brasileira e língua portuguesa. Isso tinha a ver com a independência, mas não era um nacionalismo de fundo cultural, de marcar a diferença.

Como se estava muito próximo da independência, falava-se em língua nacional, ou seja, na língua falada pela nação, que nesse momento não significava a língua falada pelo povo (entenda-se aqui povo como população), mas a língua falada por aqueles que compunham a nação política.

E os cidadãos que estivessem libertos, mesmo que tivessem alguma origem africana entre seus ancestrais, não utilizavam as línguas destes como língua principal enquanto cidadãos. Na arena pública, nas discussões políticas, nos jornais, não eram utilizadas essas línguas.

Isso significa que a questão indígena era inserida no repertório cultural através da literatura, mas a questão das influências africanas era completamente ignorada?

Naquele momento não existia a incorporação, a preocupação ou o interesse nisso. Não estava nas consciências. Isso só iria aparecer nos anos 1870 e muito timidamente. Somente depois da abolição nos anos 1890 é que vai se começar a ter alguma preocupação em relação à permanência dos vocábulos de origem africana.

A partir de que momento histórico essas influências africanas se tornaram reconhecidas e passaram a ser parte do senso comum?

Acho quem nem hoje isso é muito oficial ou de senso comum. Como esse debate gira em torno justamente do que compõe a língua, mesmo aqueles estudiosos que admitiam que existam várias palavras de origem africana no português falado no Brasil, não diziam que isso tenha modificado a língua portuguesa. Ninguém dizia que a língua era brasileira e não portuguesa por causa disso.

Dos anos 1950 para cá, esse debate volta de vez em quando, mas continua não existindo por parte do Estado nenhuma assertiva de que se trate de uma língua brasileira e de que essas heranças africana e indígena tenham alterado muito o idioma. O senso comum pode ser de que esses elementos são agregados, que enriqueceram a língua. Mas como isso ainda é fruto de discussão, não acredito que tenha chegado ao nível oficial nem se tornado senso comum.

O distanciamento entre as línguas faladas no Brasil e Portugal refletiram ao longo dos séculos, de certa forma, o distanciamento entre os universos culturais dos dois países? A autonomia idiomática foi um reflexo da autonomia política?

Não sei se há uma relação tão direta. Até determinado período, os escritores portugueses e a cultura portuguesa eram muito presentes no Brasil. Depois houve um afastamento maior e atualmente há até uma inversão. Mas, em relação ao processo de separação do Brasil de Portugal, boa parte das elites envolvidas no processo de independência eram elites com formação em Portugal. Havia vários portugueses ou filhos de portugueses participando da vida política do Brasil durante todo o período imperial. O Brasil era um grande consumidor de autores portugueses. Os brasileiros editavam muitos livros em Portugal, isso até entrando no século 20.

Ou seja, acredito que o afastamento político não tenha significado um afastamento linguístico, porque esse afastamento vem de antes. Já no século 17, em vários lugares do Brasil, você tinha colonos, que eram portugueses de nascimento e tinham chegado aqui com sesmarias, doações de terra, ou se tornaram bandeirantes, que aprenderam línguas indígenas. Então isso muito provavelmente já fez com que o português falado fosse diferente. Os indígenas aprenderam português e os africanos também. O processo de separação, de uso diferente do português, já é anterior. E ele nunca parou.

Para alguns linguistas, o mais notável é que o Brasil não tenha desenvolvido um idioma completamente diferente do português de Portugal, que o país tenha mantido a similaridade do ponto de vista gramatical, apesar do grande volume de africanos, indígenas, da mestiçagem e das diferenças regionais muito grandes. Apesar disso, o país manteve certa unidade linguística.

Pulando para o contexto contemporâneo: a recente reforma ortográfica suscitou em Portugal resistências calcadas na premissa de que o país estivesse “se abrasileirando” idiomaticamente. Isso pode se associado ao peso geopolítico que o Brasil vem ganhando nos últimos anos? Algo que estaria também se refletindo em termos linguísticos? Ou não necessariamente?

Não necessariamente. O que acontece é um nacionalismo linguístico mesmo, que tem uma dinâmica própria e que independe dessas questões geopolíticas. O nacionalismo, de maneira geral, precisa muito da língua. Você vê isso em muitos países europeus, hoje em dia também nos EUA com o spanglish.

A língua aparece como foco da nacionalidade. Então, independente da força geopolítica, uma alteração nessa ideia da nacionalidade provoca naturalmente uma reação: eu falo e escrevo de determinada maneira e agora querem modificar, querem mudar minha tradição cultural.

Além disso, Portugal e o Brasil vêm se debatendo em relação à ortografia desde meados do século 19. E nunca resolveram essa questão. A primeira tentativa séria começou em Portugal em 1911, quando foi feita uma reforma ortográfica sem consultar o Brasil. Aqui, os intelectuais brasileiros ficaram com raiva porque os portugueses estavam fazendo uma reforma da nossa língua sem nos consultar.

A partir daí, isso se acentuou muito. A cada 15 anos surgia uma tentativa de reforma. E essa questão de como fica o outro país sempre esteve presente. Isso tem muito a ver com o caráter nacionalista que está por trás da questão, independentemente da projeção geopolítica de um ou outro país.

João Paulo Rodrigues é professor de História da Universidade Federal de São João del Rei, coordenador do mestrado desta mesma instituição e doutor em História pela Unicamp.

Autora: Soraia Vilela

Revisão: Roselaine Wandscheer