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Engajamento civil não é questão de formação escolar

29 de maio de 2013

Para alguns políticos, pessoas sem formação escolar sólida não estão maduras para a democracia. A escritora egípcia Mansoura Ez-Eldin contradiz isso, embora considere necessário investir na educação.

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Foto: Mansoura Ez Eldin

A experiência vivida pelo Egito desde a revolução de janeiro de 2011 demonstra as dificuldades dos processos de democratização em sociedades com altos índices de analfabetismo e sistemas de ensino inacessíveis. Depois de cada eleição vencida por grupos radicais religiosos, tornam-se mais altas as vozes que acusam a "falta de consciência das massas".

Há quem defenda até mesmo a retirada do direito de voto dos "ignorantes". Outros apontam como solução dar a cidadãos com baixo nível escolar um peso menor nas eleições, que seu voto valha apenas 50% em relação ao dos "bem educados".

Alguns políticos acreditam que as chances de uma mudança democrática nessas sociedades sejam praticamente nulas. Eles pensam estar sendo apoiados pela parcela bem educada da população, enquanto seus opositores são "analfabetos insanos".

Deficiências na educação não justificam falta de democracia

A maioria dos que defendem tais posições é composta por supostos representantes de uma "ala democrática". E mesmo assim eles não veem como contradição o fato de quererem tirar o direito de voto de grande parte do povo, para que possam ditar a essas pessoas as regras do jogo.

Toda vez que se fala no Egito sobre o problema do analfabetismo e de seu papel como obstáculo para a democratização do país, surgem duas frentes: uma delas, com o nariz empinado, responsabiliza os cidadãos com má formação escolar e os pobres pelo crescimento de correntes de direita, religiosas e radicais. A outra sente cheiro de arrogância elitista quando se ousa mencionar o analfabetismo como um problema que impede o desenvolvimento econômico.

Entre as duas posturas há uma ampla gama de nuances. É certamente difícil negar as dificuldades de estabelecer um sistema democrático sem um sistema de ensino bom e aberto a todas as classes sociais. Um sistema que delegue a devida atenção aos direitos civis e humanos. No entanto, não devemos ignorar dois aspectos.

O primeiro argumento é óbvio: só porque em uma determinada sociedade o índice de analfabetismo é alto, isso não pode ser usado como justificativa para a manutenção de uma ditadura, sob o pretexto de que o povo não estaria "maduro o suficiente" para a democracia. No caso do Egito, ainda está fresca na memória a lembrança de como Hosni Mubarak e seu braço direito do serviço secreto, Omar Suleiman, hoje já falecido, usavam com frequência essa desculpa.

Entre os "bem educados" também falta consciência democrática

Em segundo lugar, precisamos nos deparar com o fato de que o problema não é apenas a deficiência de competências de leitura e escrita. Trata-se muito mais de uma formação política essencialmente deficiente, que transmite uma ideia deturpada de democracia, não se esforçando para ensinar aos escolares, desde pequenos, valores como os direitos humanos e a igualdade de direitos.

Sendo assim, caso se queira de fato levar a mudança democrática a cabo, é absolutamente necessário reformar o sistema de ensino. É preciso modernizar os currículos escolares, limpando-os dos vestígios das décadas de ditadura, bem como do fanatismo religioso e da propaganda feita pelo atual governo.

Um sistema de ensino sem cautela como esse é responsável pelo fato de até estudantes que concluem cursos superiores no Egito acreditarem que, em caso de um presidente eleito, é preciso fechar os olhos frente a assassinatos, torturas e desrespeito aos direitos humanos. Tudo sob o argumento de que um líder eleito democraticamente está legitimado pelas urnas.

Por isso não é surpreendente que todo presidente eleito – seja por desconhecimento ou por propósitos de manipulação – atrele a eleição democrática ao conceito islâmico do "voto de fidelidade". Isso exige uma obediência absoluta ao líder e execra qualquer espécie de rejeição a ele.

Concorrência política se transforma em luta do bem contra o mal

Depois de seis décadas de hegemonia à custa de violência, enquanto o nível das escolas e universidades públicas piorava constantemente, não é surpreendente que o conceito de democracia exista apenas de maneira vaga nas cabeças das pessoas.

Sendo assim, os esforços em prol da implantação da democracia são submetidos a uma série de adversidades. A mais perigosa delas é o cenário que inclui uma ligação da herança da ditadura militar com uma ditadura clerical em estágio ainda incipiente, que insere a religião como uma de suas metas.

Uma mistura como essa pode, na falta de uma resistência social, levar a um fascismo religioso que estigmatiza os oposicionistas como incrédulos e faz o sangue deles jorrar em nome da religião. Por isso precisamos também de uma reforma do ensino religioso. É preciso libertar o discurso religioso de suas visões discriminatórias e difamantes frente às mulheres e aos membros de outras religiões.

Muitos pregadores e clérigos usam o prestígio que têm entre os fiéis para convencê-los de que todo o que votar num candidato islâmico já tem garantida a passagem para o paraíso. Com isso, a concorrência política é degenerada a uma luta do bem contra o mal, na qual as pessoas simples se tornam presas e pólvora de uma causa que não é delas.

Eleitores sem formação escolar têm instinto

Mas é de fato a população sem formação escolar que se deixa manipular? Mesmo que a percentagem de votos para a ala de direita, religiosa e radical, seja mais alta onde há índices mais altos de analfabetismo, seria um erro transformar isso numa acusação genérica contra os menos favorecidos. Pois esses acabam se alinhando instintivamente ao lado que parece oferecer soluções mais próximas para seus problemas. Eles dão seus votos àqueles que não têm pudor de realizar trabalho de base in loco, nas regiões mais pobres.

Mas essas preferências podem mudar rapidamente, quando as pessoas começam a perceber que foram enganadas. Ou seja, elas não tomam suas decisões de maneira "irracional", mas baseadas em experiências e erros. Elas podem reagir com flexibilidade a mudanças e não estão ligadas para sempre a um mesmo partido.

Todo eleitor deveria, independentemente de seu nível de formação escolar, ter o direito de tomar suas decisões tendo em vista suas próprias convicções.

E ninguém deveria, neste caso, acusar essas pessoas de terem uma consciência política deficiente. Ou fazer a elas acusações de não estarem aptas a diferenciar contextos. Por outro lado, é recorrente observar entre pessoas com formação superior, altamente qualificadas, pensamentos que vão de encontro a quaisquer direitos civis ou liberdades.

Reforma do sistema educacional demora

Ou seja, é injusto crucificar os menos favorecidos do ponto de vista da educação toda vez que um processo de democratização emperra. Ao mesmo tempo seria hipócrita negar que o analfabetismo crescente é um problema cuja solução terá que ser encontrada em breve. A reforma e a ampliação do sistema de ensino irão levar muito tempo e só ocorrerão se houver de fato uma vontade elementar para tal.

Até que isso aconteça, as esperanças vão sendo depositadas nas organizações civis, nos grupos independentes e nos partidos políticos. Estes precisam criar uma consciência política, precisam fazer com que os cidadãos – independentemente das diferenças entre eles – defendam seus interesses e cumpram suas obrigações, exigindo que a reforma do sistema de ensino seja imediatamente levada a cabo.

Resumindo: precisamos nos conscientizar de que, depois de décadas de repressão, ancorar a democracia liberal a uma sociedade é um processo longo e difícil, que exige esforços constantes de diversas frentes. Só assim poderemos corrigir as deficiências do sistema de ensino geradas por uma educação ruim. Aí será mais fácil encontrar soluções que garantam de fato a igualdade entre todos os cidadãos – independentemente de suas origens e formação educacional.

A escritora egípcia Mansoura Ez-Eldin foi indicada no ano de 2010, como única mulher, para o Prêmio Internacional de Ficção Árabe. O processo de modernização na cultura cotidiana do Egito desempenha um papel fundamental em sua obra. (sv)