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Novas evidências da perseguição a uigures na China

William Yang | Sandra Petersmann cn
17 de fevereiro de 2020

Lista com detalhes sobre detidos revela sistema de monitoramento e espionagem que abrange famílias inteiras. Prisões são justificadas por uso de barba, véu islâmico ou violação da política de natalidade.

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"Campo de reeducação" em Hotan, na região de Xinjiang
"Campo de reeducação" em Hotan, na região de XinjiangFoto: AFP/G. Baker

Em maio de 2017, um uigur foi levado a um "campo de reeducação" na região de Xinjiang, no noroeste da China. Ele foi detido porque sua esposa cobriu o rosto com um véu muçulmano e por ter "muitos" filhos. Ele nunca chegou a ser julgado.

De acordo com um documento vazado, o homem passou por "uma grande transformação ideológica" no campo e "percebeu seus erros e mostrou arrependimento".  Os quatro meninos e duas meninas da família tinham um "bom comportamento". Em junho de 2017, foi a vez de a mãe ser mandada para a prisão por seis anos, acusada de participar de "atividade religiosa ilegal".

A história da família é semelhante a outras centenas de casos, descobertos devido ao vazamento de dados que revelam os motivos de detenções, além do uso de vigilância de alta tecnologia e trabalhadores para rastrear identidades, locais e hábitos de membros da minoria muçulmana dos uigures.

A lista revela o destino de 311 enviados para a reeducação por motivos inócuos, como deixar a barba crescer, jejuar ou pedir um passaporte. Todos foram levados a campos entre 2017 e 2018. O documento também dá detalhes sobre centenas de outras pessoas ligadas aos detidos, incluindo crianças.

A DW, juntamente como as emissoras alemãs NDR e WDR e o jornal Süddeutsche Zeitung, passou semanas traduzindo e analisando a lista de 137 páginas. Quase nada indica que as medidas contra os uigures seriam voltadas a combater o extremismo, como afirma Pequim. Apenas três pessoas da lista pertenceriam à organização islamista Hizb-ut-Tahrir. Pelo contrário, os dados mostram que a China persegue sistematicamente a minoria devido à sua religião e cultura.

Documento vazado revela perseguição religiosa a uigures

Depois de um ataque a bomba na capital de Xinjiang, em maio de 2014, as autoridades chinesas instalaram um sistema de vigilância e criaram campos de detenção em massa, chamado oficialmente de Centros de Treinamento em Formação Profissional.

Segundo um relatório secreto do Ministério do Exterior alemão de dezembro do ano passado, pelo menos 1 milhão dos quase 10 milhões de uigures que vivem no país foram enviados a esses locais. O documento se refere aos centros como "campos de reeducação" com "cursos de treinamento ideológico draconiano".

A China alega que esses campos são uma ferramenta eficaz na luta contra o terrorismo. A lista sobre os presos, porém, não indica que Pequim tenha como alvo potenciais terroristas.

A análise do documento confirma algo que muitos observadores internacionais de direitos humanos temiam: uma campanha sistemática de perfil étnico e de encarceramento arbitrário.

Lista com detalhes sobre detidos
Lista com detalhes sobre detidos possui 137 páginasFoto: NDR

A lista mostra o monitoramento de pequenos detalhes, como o download de um vídeo há seis anos ou mensagens trocadas no WeChat com amigos no exterior. A análise revela como uigures são submetidos a métodos draconianos de monitoramento e prisão. Famílias da minoria são constantemente controladas por uma rede de espiões, visitas repetidas às suas residências e interrogatórios coletivos.

O documento contém nomes completos, números de identificação e comportamento social de mais de 1,8 mil familiares, vizinhos e amigos dos 311 detidos. Outras centenas também aparecem com menos detalhes. Um grande número de servidores públicos trabalha na coleta destes dados com o auxílio de tecnologia moderna, como aplicativos de monitoramento e câmeras de reconhecimento facial.

A lista concentra casos de uma região do país que fica na fronteira entre a Índia e Tibete, onde vivem cerca de 650 mil habitante e onde há ao menos cinco destes campos. O documento menciona quatro deles.

A DW recebeu a informação sobre esse documento em novembro de 2019, pelo informante Abduweli Ayup, um acadêmico uigur exilado na Noruega. Ele recebeu o PDF de uma fonte anônima. Apesar de não ter carimbos oficiais ou assinatura, o novo vazamento é semelhante aos "Papéis de Xinjiang", revelados pelo jornal americano The New York Times, e pelos "China Cables", publicados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ).

Ambos revelam a dimensão da opressão a uigures no noroeste da China. O novo documento mostra os motivos das detenções e fornece um olhar mais atento ao cotidiano da minoria. A DW conseguiu entrar em contato com familiares de alguns detidos e consultou especialistas para atestar a veracidade das informações.

Para Rian Thum, especialista em política chinesa para os uigures da Universidade de Nottingham, esse monitoramento da vida privada é "impressionante" nos níveis de detalhes. "É interessante imaginar que essas coisas existem além de Xinjiang. Os dados devem ser espantosos".

Motivos banais

O destino dos uigeres nos campos também depende das ações de quem está em liberdade. Em alguns casos, a conduta de parentes é usada como referência direta para uma possível soltura.

Em alguns casos, a DW encontrou referências sobre um sistema de trabalho forçado em fábricas. Um deles envolveu um homem detido em maio de 2018 por ter entrado em contato como o irmão que fugiu para a Turquia. Segundo o documento, ele representava "certo nível de perigo para a sociedade" e a recomendação da "comunidade" seria mantê-lo "numa fábrica nos campos de reeducação".

Pontos mostram centros de detenção em massa na China
Pontos mostram centros de detenção em massa na China

O motivo mais recorrente para a prisão é a violação da política oficial de natalidade. Segundo a legislação, uigures e outras minorias que vivem em áreas urbanas podem ter dois filhos e os das regiões rurais, três. Um número muito maior de homens do que mulheres foi detido por ter mais filhos do que o permitido.

Essa disparidade poderia indicar que o governo chinês considera os homens a principal ameaça na região. "Em termos de islamofobia, homens em geral, especialmente os mais jovens, são sempre alvos e vistos como potenciais terroristas", afirma Darren Byler, especialista da Universidade de Colorado. "Acredito que Pequim quer enfraquecer ou diminuir a população uigur como forma de reduzir a percepção de ameaça".

Alvos jovens

A análise do documento indica que o governo chinês tinha como alvo a geração mais jovem. Termos como "pessoa preocupante" ou "pessoa não confiável" eram usados para nascidos entre 1980 e 2000. Mais de 60% dos detidos tinham entre 20 e 40 anos.

"Isso tem uma implicação fundamental na taxa de natalidade e demográfica. Se pegar uma porção, ou até mesmo todos os jovens de uma vila, haverá basicamente uma pausa no crescimento da comunidade", avalia Thum.

Dezenas de listados foram presos por terem amizade com "um suspeito que vive no exterior" ou por terem participado de uma peregrinação muçulmana em Hajj ou Meca. Em cerca de 40 casos, pessoas foram detidas também por solicitar um passaporte.

A China também classificou 26 países como "sensíveis", quase todos são de maioria muçulmana, como Argélia, Paquistão e Arábia Saudita, ou ainda o vizinho Cazaquistão, onde muitos uigures têm família, além de laços culturais e étnicos. Qualquer contato com esses lugares é passível de detenção.

"Se o Partido Comunista Chinês for capaz de eliminar a influência do islã em todos os elementos da vida uigur, a cultura desta minoria certamente será esvaziada", disse Timothy Grose, do Instituto de Tecnologia Rose Hulman, nos Estados Unidos.

Para especialistas, Pequim só irá parar quando eliminar as raízes religiosas e a herança cultural de uigures e outras minorias muçulmanas em Xinjiang.

Em uma entrevista recente à DW, durante uma visita a Berlim, o ministro do Exterior da China, Wang Yi, disse que qualquer reportagem sobre "campos de concentração" para os uigures é "notícia completamente falsa" para prejudicar o desenvolvimento do país e descartou haver "perseguição" em Xinjiang.

Os jornalistas da DW Naomi Conrad, Cherie Cham, Julia Bayer, Mathias Stamm e Wesley Rahn também contribuíram para essa reportagem.

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Sandra Petersmann
Sandra Petersmann Chefe de Pesquisa e Investigações