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Derrubando paredes e estereótipos na favela

Luisa Frey
21 de novembro de 2016

Antes apenas mais um espaço em meio ao caos de Heliópolis, escola se transforma em local de referência para a comunidade, com o diálogo e uma revolução no método de ensino como pilares.

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Heliópolis
Heliópolis vista do portão ao fundo do CEU que abriga a Emef Presidente Campos SallesFoto: DW/L. Frey

Ao visitar o prédio cor de laranja, bem conservado e rodeado por uma mureta baixa da Escola Municipal de Ensino Fundamental Presidente Campos Salles, em Heliópolis, é difícil acreditar que há duas décadas o local era visto como dos "favelados e marginais" e que ninguém queria estudar ali.

"Quando cheguei aqui, em 1995, tínhamos de cinco a seis brigas diárias. Era uma praça de guerra", conta Braz Rodrigues Nogueira, que foi diretor da instituição durante 20 anos. "Matavam as pessoas e jogavam aqui, era um depósito de corpos", complementa Amélia Fernandez, coordenadora pedagógica, apontando para um pequeno morro diante da escola.

Localizada no sudeste de São Paulo, Heliópolis é uma das maiores favelas do Brasil e da América Latina. A União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas) estima que 200 mil pessoas vivam na área. Com 1 milhão de metros quadrados, a favela é cortada por becos e vielas pelas quais nem motos conseguem passar. Antes apenas mais um espaço em meio ao caos, a Campos Salles se transformou num local de referência para a comunidade, graças ao diálogo e a uma revolução no método de ensino.

Derrubando paredes

Numa foto de 2007, vê-se Braz com uma marreta na mão em meio a uma pilha de entulho. Naquele ano, as paredes que dividiam as 12 salas de aula da Campos Salles foram quebradas, dando origem a quatro grandes salões de estudo.

Cada um dos salões abriga cerca de 100 alunos do mesmo ano, que, em grupos de quatro, ficam sob a supervisão de três professores. Não há mais aulas expositivas de 45 minutos. Os estudantes recebem um roteiro de estudos multidisciplinar e trabalham de forma autônoma, um ajudando o outro. Se as dúvidas persistem, o educador é acionado, mas sua função não é dar respostas.

"O professor diz: 'Você já olhou na página do livro tal? Lá tem um exercício modelo'. Ou então: 'Você já procurou no Google?'", exemplifica Braz.

Para José Genaro de Araújo – pai de aluno, membro do conselho de escola da Campos Salles e da gestão da Unas –, a implementação do novo método de ensino aconteceu graças à busca de Braz por transformar escola e comunidade numa coisa só. De origem nordestina, assim como a maioria dos moradores de Heliópolis, Genaro vive na região desde o início dos anos 1980. Ele diz que não saberia onde colocar o filho se não fosse na escola, que tem 875 alunos.

O prédio da Campos Salles está hoje inserido no Centro Educacional Unificado (CEU) Heliópolis, espaço que nasceu de uma reivindicação da comunidade. Com creches, escola de educação infantil, Etec, biblioteca e ginásio de esportes, o CEU é arborizado e aberto a todos.

Não à violência

Calvo e de barba grisalha, Braz conta que, poucas horas depois de assumir o cargo de diretor, há duas décadas, colocou as mãos na cabeça e se perguntou: "O que eu fiz da minha vida?" Foi então que duas ideias o salvaram. "A primeira é a de que tudo passa pela educação, que deve ser uma preocupação de toda a sociedade", diz. "A segunda é a de que a escola tem que ser um centro de liderança na comunidade." E foi então que ele começou uma "busca obstinada" pela aproximação com pais, professores, alunos e moradores.

Braz Nogueira
Braz Nogueira: "Em 1995, tínhamos de cinco a seis brigas diárias. Era uma praça de guerra”Foto: DW/L. Frey

Quando ocorreu o último toque de recolher que paralisou toda Heliópolis, em 1999, a Campos Salles não cedeu. "Quem manda aqui somos nós, e não os traficantes", disse Braz aos alunos. No mesmo ano, Leonarda, estudante de 15 anos, foi executada com cinco tiros na cabeça no caminho da escola para casa. A morte revoltou Braz, e, com o apoio de um professor, ele apresentou à Unas a proposta de realizar uma caminhada pela paz.

"Se a Campos Salles está dentro, nós também estamos. Porque para nós não existe a escola lá e nós aqui. Somos a mesma coisa", disse o então presidente da Unas, João Miranda. A caminhada se tornaria uma marca de Heliópolis. A 18ª edição, em junho deste ano, reuniu cerca de 20 mil pessoas.

Apesar dos esforços de Braz, a relação com a comunidade como um todo não mudou da noite para o dia. Em 2002, pularam o muro alto que circundava a Campos Salles e furtaram 21 computadores. "Os filhos de vocês foram roubados, e não prefeitura ou o diretor", disseram Braz e Miranda aos moradores da favela. Três dias depois, os computadores foram devolvidos, e logo o muro foi derrubado. "Entendemos que quem tinha que cuidar da escola era a comunidade, e não o muro", diz Braz.

Os laços com os moradores iam se fortalecendo, mas a Campos Salles não conseguia quebrar uma barreira crucial: a entre alunos e professores. Foi então que uma docente veio com uma ideia revolucionária: implementar a metodologia de ensino da Escola da Ponte, em Portugal.

Após ser objeto de estudo de uma pós-graduação de Braz e de um ano e meio de reuniões junto à comunidade, o projeto pedagógico foi votado no conselho de escola. Lideranças comunitárias compareceram em peso, e a proposta, que derrubaria as paredes da escola, foi aprovada por unanimidade. Às duas ideias que salvaram Braz, somaram-se os pilares da Escola da Ponte: autonomia, responsabilidade e solidariedade.

Emef Presidente Campos Salles
Sem aulas e paredes: alunos da Emef Presidente Campos Salles trabalham em grupos de quatro em grandes salõesFoto: DW/L. Frey

Democracia na escola

Anailton Lourenço da Silva, aluno do 9º ano, valoriza esses três princípios. "Acredito que o que está faltando na sociedade hoje é o que estamos vivendo nesta escola", diz o menino de 14 anos, que veio de Pernambuco para Heliópolis aos oito meses de idade. Ele é vereador e secretário de convivência e diversidade da Campos Salles.

A república de alunos também conta com prefeito, vice-prefeito e secretários de comunicação, de saúde e meio ambiente e de esporte e cultura. Para ser eleito a um desses cargos, o aluno tem que antes ter sido membro da comissão mediadora de um dos salões.

Na sala onde costumam se reunir, alunos da comissão do segundo ano, de apenas oito anos de idade, relatam casos de colegas que tiveram problemas de disciplina. "Minha prima é muito bagunceira, e minha tia foi convocada", conta uma das meninas. Primeiro a comissão, formada por dez estudantes, discute o problema, deixa o aluno em questão se defender e propõe soluções. Se a ele não muda, convocam os pais, falam com o diretor, com o coordenador.

"As comissões são o nosso dispositivo pedagógico mais importante", afirma Amélia, destacando a convivência entre os alunos e a tentativa de acabar com analfabetos políticos.

Emocionada, a coordenadora pedagógica diz que Braz é o grande mentor do movimento de transformação por meio da educação em Heliópolis. "Ele está presente no discurso de qualquer educador aqui, nas crianças, no projeto." O ex-diretor comanda hoje a Diretoria Regional de Educação Ipiranga, que engloba Heliópolis, e, aos 64 anos, está prestes a se aposentar.

"O Braz foi para mim como um pai, porque o meu pai e a minha mãe foram muito ausentes. E ele foi pai e mãe desse projeto. A gente não vai deixar esse projeto morrer, porque isso virou a nossa vida", diz Anailton, que sonha em um dia ser diretor da Campos Salles.

As mudanças ocorridas desde que o garoto entrou na escola foram acompanhadas da diminuição dos índices de violência na área. Em 2011, a Delegacia de Polícia de Heliópolis registrou 80 homicídios dolosos. No ano passado, foram 11 – 86% a menos. Quando sai da aula hoje, Anailton e seus colegas não se deparam mais com corpos no chão ou brigas violentas, que se tornaram raridade na Campos Salles e em seu entorno.