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Um contrabaixo canta e dança

Augusto Valente17 de abril de 2007

O CD "Dreams", de Gottfried Engels e Ernst Ueckermann, prova que o contrabaixo pode ser um ágil solista de câmara. E que ginga e "tanguidad" não são obstáculos para músicos de verdade.

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O músico e seu instrumentoFoto: Gottfried Engels/Balsereit

Os instrumentos de cordas friccionadas são os reis da música de câmara. Do século 18 até nossos dias, contam-se aos milhares as peças escritas para violino e piano. A voz grave e emotiva do violoncelo também inspirou gerações e gerações de compositores.

Até mesmo a viola – considerada gauche, com seu jeito de violino que cresceu demais – conta com um repertório considerável, que inclui sonatas de Johannes Brahms, Dimitri Chostakovitch ou Paul Hindemith.

Gottfried Engels und Ernst Ueckermann
À direita, o pianista Ernst UeckermannFoto: Gottfried Engels

E o contrabaixo? A noção corrente é que ele se presta mais à função – essencial, porém subalterna – de fornecer as bases da harmonia, ser o sustentáculo grave da música; acompanhador, mas quase nunca solista. Afinal, é tão grande e pesadão, incapaz de cantar ou de grande agilidade, sobretudo quando tocado com arco. Ou não?

É hora de rever os preconceitos, pois o CD Dreams – Contrabaixo ibero-americano, do instrumentista alemão Gottfried Engels, prova justamente o contrário. Acompanhado pelo pianista Ernst Ueckermann, ele revela uma capacidade de dançar, que o vovô dos instrumentos de cordas quase nunca tem a oportunidade de exibir, fora do terreno do jazz.

"Você tem que tocar isso!"

O álbum ilustra algumas décadas do nacionalismo musical latino-americano. Ou seja, a prática – iniciada no início do século 20, e da qual Heitor Villa-Lobos é possivelmente o maior expoente – de buscar no folclore ritmos, harmonias, melodias e formas, transportando-os para o universo das salas de concerto.

O duo abre o CD com duas obras originais para contrabaixo e piano: Habanera, do argentino Salvador Amato; e Suite Andaluza, em quatro movimentos, de Pedro Valls, contrabaixista catalão que atuou em Buenos Aires.

Engels tem atravessado o mundo com seu instrumento. Como ele comenta, o repertório de Dreams "nasceu do desejo de executar composições que, em minhas muitas viagens pela América do Sul, alunos, colegas e amigos me puseram em mãos, dizendo: 'Você tem que tocar isso!'".

Paixão latino-americana

A América do Sul é, de fato, uma presença constante na vida profissional do contrabaixista, também como docente. Sua longa lista de oficinas e masterclasses se inicia em 1978 com um curso em Brasília. Nos anos seguintes, lecionou ainda em São Paulo e no Rio de Janeiro, assim como nas capitais Assunção, Caracas e Quito.

Engels, que é também regente, participa de um projeto abrangente de formação musical na capital venezuelana. E o Brasil é parte de seu dia-a-dia: ele é casado e tem um filho com uma brasileira. Ambos se conheceram quando esta estudava Pedagogia Musical em Brasília.

As duas faixas seguintes do CD, Canção e Dança, prestam homenagem ao compositor carioca Radamés Gnattali. Falecido em 1988, ele encontrou uma solução muito pessoal para a estética nacionalista, baseada em elementos jazzísticos. Engels e Ueckermann fazem pleno jus ao vigor rítmico e refinamento harmônico do já legendário maestro e arranjador.

Reconhecido pelos especialistas

Gottfried Engels, Musiker und Dirigent
Gottfried EngelsFoto: Presse

O contrabaixista e o pianista – também alemão, nascido na África do Sul – tocam juntos há vários anos. Ambos lecionam em Colônia, cidade renana cuja comunidade de brasileiros é uma das maiores da Alemanha.

A revista Bass World, da Sociedade Internacional de Baixistas, ressaltou a perfeição musical do duo, em especial a sonoridade e a beleza de fraseado do contrabaixista – tocando um instrumento construído em 1852 pelo cremonense Enrico Ceruti –, assim como a solidez e sensibilidade do acompanhamento de Ueckermann.

O CD inclui duas obras de Astor Piazzolla, das quais Kicho foi transcrita para os dois instrumentos pelo próprio tanguero. A peça se abre com uma cadenza, uma divagação para contrabaixo solo, que dispersa qualquer dúvida de que – nas mãos certas – o instrumento seja capaz de competir com o violoncelo, em expressividade e virtuosismo.

Repertório emprestado

E, como o repertório para o inusitado duo não é mesmo tão vasto assim, as cinco demais faixas do álbum são transcrições ou arranjos de obras concebidas para outras formações instrumentais.

A pioneira da música popular brasileira Chiquinha Gonzaga (1847-1935) brilha com Lua Branca e o tortuoso maxixe Corta-Jaca. Do arranjador e pianista Leandro Braga são as inspiradas versões de Mandacaru, de Cristóvão Bastos, e do "tango brasileiro" Odeon, original para piano de Ernesto Nazareth. Também aqui a interpretação nada deixa a desejar em termos de graça e ginga.

O passeio pelo mundo da música ibero-americana se conclui realmente de maneira onírica, revelando o talento de arranjador de Ernst Ueckermann. Quem conhece a versão de Oblivión para canto e quinteto, se espantará como – sem bandoneon e com um mínimo de notas – o pianista conseguiu reproduzir em duo toda a tanguidad desta pungente canção piazzolliana.