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Criticar Lula não é apoiar Bolsonaro

Philipp Lichterbeck
Philipp Lichterbeck
29 de março de 2023

Jornalismo deve questionar quem está no poder, portanto críticas ao presidente não são blasfêmia. Lula não deveria se superestimar, mas reconhecer os próprios erros e dar espaço para um possível sucessor ou sucessora.

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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursa
Desde 1º de janeiro, o poder político no Brasil está com LulaFoto: Valter Campanato/Agência Brasil

Talvez uns ou outras se surpreendam, mas também o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é um ser humano. E, como tal, comete erros. Portanto, pode-se, ou melhor, deve-se criticar os erros dele. Isso não significa apoio ao bolsonarismo.

O principal dever do jornalismo é acompanhar de forma crítica os poderosos. No Brasil, muitos parecem não entender isso, também entre a esquerda. Toda crítica a Lula vira uma blasfêmia, e a reação é consequentemente furiosa e exagerada. É também o resultado do presidencialismo (nocivo em toda a América Latina) o qual concentra todas as esperanças e todo o ódio numa única pessoa. A polarização não deixa espaço para visões ponderadas.

Um Brasil depois de Bolsonaro

Desde janeiro, o poder político no Brasil está com Lula e, ainda bem, não mais com o ex-presidente Jair Bolsonaro. Aleluia! É um grande mérito de Lula ter batido Bolsonaro nas urnas e ter expulso a ele e a seu insuportável clã do Palácio do Planalto.

Nunca a diferença entre aparência e realidade fora tão grande: Bolsonaro, seus filhos e esposa até hoje se apresentam como gente humilde e preocupada com o Brasil, mas, na verdade, apenas visam o poder e o acúmulo de riqueza. Para isso, utilizam todos os meios: perversão da fé cristã, mentiras, corrupção e instrumentalização do aparelho do Estado para fins de desvio do patrimônio público.

Bolsonaro vai continuar sendo uma figura política desagradável. Vai continuar tentando chamar a atenção com baderna, porque, de outra maneira, ninguém lhe dá ouvidos. Sem baderna ele não existiria. Vai espalhar mentiras e tentar atiçar seus apoiadores em motociatas sem sentido.

Mas o poder de decisão não está mais com ele. Está com Lula, aquele que um dia disse de si mesmo (já então andava na casa dos 70) que tinha "30 anos de energia e 20 de tesão". Lula deve mesmo se sentir assim, e de fato não deve haver no mundo muitas outras pessoas de 77 anos tão dinâmicas e empreendedoras.

Contudo, essa superestimação de si próprio aparentemente também o faz falar antes de se informar, dirigir-se à imprensa antes de refletir. A experiência ensina que é melhor calar quando as emoções afloram. Que é melhor dar um tempo quando se está irritado com algo. E que é sempre bom buscar o conselho de gente de confiança e bem informada.

Lula parece ter outra visão. Ele é impulsivo, por exemplo, quando, em declarações à revista Time, falou bobagens sobre a invasão criminosa da Ucrânia pela Rússia. Ou quando comentou a investigação, a cargo da Polícia Federal, de planos do PCC para matar o senador Sergio Moro.

Reflexo da cultura política brasileira

Claro, Lula também é um produto da cultura política brasileira, em que debates construtivos costumam dar lugar a disputas pessoais, em que mais se provoca do que se produz.

Mesmo assim, deveria deixar de lado esse papel de "Papai do Brasil" que vai "cuidar do povo", e parar de tentar resolver tudo sozinho. Uma característica do poder é isolar quem o detêm por tempo demais. O poderoso tende à prepotência, e quem está à sua volta não ousa mais dizer abertamente o que pensa.

Entre 2003 e 2010, Lula liderou o que provavelmente foi um dos governos mais bem-sucedidos da história do Brasil. Pela primeira vez, os pobres tiveram voz. Ele deu às classes desfavorecidas a chance de ascensão social por meio da educação, a economia floresceu, e o Brasil obteve importância política internacional.

Essa experiência sedimenta sua autoconfiança e sua convicção de que também desta vez fará tudo certo. Ele levou para seu governo pessoas inteligentes, engajados e sérias, o que só aumenta o contraste com a incompetência e o cinismo do governo Bolsonaro.

Mas, para garantir o poder, Lula também se cercou de algumas laranjas podres (Juscelino Filho, Rui Costa, Renan Filho, Waldez Góes – todos suspeitos de nepotismo ou até corrupção, a velha praga brasileira do patrimonialismo).

Chamar a atenção para tudo isso não significa contribuir para o retorno do bolsonarismo. Claro que as palavras do escritor Paulo Coelho ("governo patético") foram exageradas e provavelmente motivadas por vaidade. Mas também Lula precisa reconhecer que o mundo de 2023 não é mais o de 2003.

Lula não deveria superestimar seu carisma, mas reconhecer que também comete erros, ignorar um insuportável Sergio Moro, e confiar em seus bons ministros. Deveria ter a amplitude de visão para entender que também as suas forças vão se esvair, e aos poucos começar a preparar o terreno para um sucessor ou uma sucessora. Se não, o bolsonarismo tem boas chances de voltar ao poder.

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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria  Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

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Cartas do Rio

Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio de Janeiro, em 2012. Na coluna Cartas do Rio, ele faz reflexões sobre os rumos da sociedade brasileira.