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Começa julgamento da maior fraude do pós-guerra na Alemanha

Nik Martin
8 de dezembro de 2022

Dois anos após colapso da Wirecard, três ex-executivos da empresa enfrentam uma série de acusações. Fintech teria fraudado balanços para enganar investidores e credores.

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Prédio da sede da Wirecard em Aschheim, na Alemanha
Antiga sede da Wirecard em Aschheim, na AlemanhaFoto: SvenSimon/picture alliance

O julgamento do escândalo envolvendo a processadora de pagamentos alemã Wirecard começou nesta quinta-feira (08/12) em Munique, dois anos e meio após o colapso da fintech. No banco dos réus estão o fundador e ex-presidente da Wirecard, Markus Braun, e dois ex-executivos da empresa, que enfrentam uma série de acusações, incluindo falsificação de balanços do grupo e fraude contra credores num montante que chega a 3,3 bilhões de euros.

Uma acusação de 89 páginas deve ser lida durante o julgamento que será realizado numa ala subterrânea de alta segurança próxima à penitenciária de Stadelheim, o maior presídio da Baviera. Para o ex-deputado alemão Fabio De Masi, que participou do inquérito parlamentar do Bundestag sobre o escândalo, Braun foi o "Poderoso Chefão" de um elaborado esquema para enganar os investidores da fintech Wirecard.

De Masi, que na época da investigação era membro do partido A Esquerda, lembra o relatório parlamentar de 675 páginas sobre o caso, publicado no ano passado, que confirmou o envolvimento de Braun nas assinaturas de fundos para empresas terceirizadas apesar dos alertas que recebeu sobre estar dando "a última liquidez da Wirecard".

O que é a Wirecard?

A Wirecard chegou a ser um exemplo para o setor de tecnologia financeira da Alemanha. Criada em 1999 como uma processadora de pagamentos online para sites de pornografia e de jogos, a empresa conquistou um fluxo estável de receita que lhe ajudou a sobreviver ao fim da bolha da internet. A fintech construiu uma base mais ampla de clientes varejistas graças ao boom global das compras online e, mais tarde, dos pagamentos móveis.

Sob o comando de Braun, ex-consultor da empresa de prestação de serviços KPMG, que entrou na fintech em 2002, a Wirecard cresceu numa velocidade vertiginosa, engolindo pequenas processadoras de pagamentos e expandindo para o setor bancário.

A empresa alemã chegou a lançar uma joint-venture com a gigante chinesa do comércio eletrônico Alipay para permitir que turistas chinesas pagassem por bens e serviços no exterior.

Em 2005, a Wirecard abriu seu capital na Bolsa de Valores de Frankfurt, e 13 depois superou o tradicional banco Commerzbank no índice DAX. No seu auge, a fintech foi avaliada em mais de 25 bilhões de euros, ultrapassando até mesmo o Deutsche Bank.

O que derrubou a Wirecard?

Em 2016, surgiu o primeiro alerta sobre as atividades da fintech alemã. Uma empresa de investigação financeira americana, a Zatarra, publicou um relatório negativo sobre a Wirecard, no qual alegava atividades fraudulentas. No documento, executivos do grupo foram acusados de lavar dinheiro e fraude.

Três anos depois, o jornalista Dan McCrum do jornal britânico Financial Times publicou uma série de reportagens sobre irregularidades contábeis nas unidades asiáticas da Wirecard. Em junho de 2020, a empresa admitiu à auditoria EY que 1,9 bilhão de euros, que supostamente deveriam estar em duas contas na Filipinas, provavelmente não existia.

As ações da Wirecard despencaram 99% e a fintech se tornou a primeira empresa do DAX a falir, com uma dívida de 4 bilhões de euros.

Markus Braun, no julgamento em Munique
Braun alega ser vítima e ter sido enganado pelos outros acusadosFoto: CHRISTOF STACHE/AFP

Uma investigação do Financial Times descobriu que empresas terceirizadas (TPAs), que processavam pagamentos para a Wirecard onde a fintech não tinha licença para operar, contabilizavam cerca da metade das receitas informadas pela empresa alemã e uma grande parte de seus lucros. No entanto, o endereço de uma destas terceirizadas nas Filipinas era uma casa de família e outro de uma empresa de ônibus em Manila.

O auditor da EY responsável pela conta da Wirecard por décadas enfrentou duras críticas e está sendo processado pelos acionistas da fintech. A EY alega ter agido profissionalmente.

Na época, o governo da ex-chanceler federal da Alemanha Angela Merkel cogitou socorrer a empresa. O então ministro das Finanças, Olaf Scholz, agora chanceler federal foi criticado por não ter percebido as irregularidades na Wirecard. No inquérito parlamentar, Scholz alegou que a maior parte das fraudes ocorreu antes dele ter assumido o cargo.

Como agiram os órgãos de controle da Alemanha?

O escândalo também revelou que a agência reguladora de mercado alemã, a BaFin, não somente falhou ao não detectar a fraude – apesar de todas as suspeitas levantadas por analistas do mercado financeiro e jornalistas –, como também, em vez disso, apresentou queixas contra os repórteres do Financial Times, alegando manipulação de mercado. Posteriormente, as queixas foram retiradas.

Para De Masi, a reação oficial às notícias negativas foi "escandalosa". Um procurador público chegou a proibir a venda das ações da Wirecard "baseado numa teoria de conspiração esdrúxula de que a Bloomberg conspirou para chantagear a Wirecard".

O embaraço forçou as demissões dos presidentes da BaFin e da associação alemã responsável por fiscalizar o mercado. O escândalo virou ainda um documentário na Netflix.

"Muitos não queriam acreditar que os autores da fraude trabalhavam na Wirecard", afirmou Volker Brühl, do Centro de Estudos Financeiros de Frankfurt.

Quais são as acusações do julgamento?

Braun e dois outros executivos do alto escalão da Wirecard são acusados de inflar os lucros da empresa por meio de transações fictícias envolvendo uma complexa rede de subsidiárias e empresas parceiras. Além do CEO, o antigo presidente da subsidiária de Dubai Oliver Bellenhaus e o executivo Stephan von Erffa estão no banco dos réus.

Os promotores acusam o trio de apresentar resultados financeiros incorretos para 2015-2018 ao incluir receitas de empresas de Dubai, Filipinas e Cingapura que "não existiam de fato".

Acusados por fraude e manipulação de mercado, entre outros, os três podem serem condenados a até 15 anos de prisão. Detido desde 2020, Braun nega ter cometido os crimes e acusa os outros de realizarem as operações sem seu conhecimento.

A acusação afirma que a Wirecard inventou vastas somas de receitas fantasmas para enganar investidores e credores. Após centenas de interrogatórios, dezenas de buscas e análise de 42 terabytes de dados, os promotores escreveram um inquérito de 474 páginas.

Autoridades de mais de duas dúzias de países contribuíram com a investigação, entre eles, Suíça, Cingapura, Áustria, Filipinas, Reino Unido e Rússia.

O veredito ainda deve demorar e não é esperado para antes de 2024.

"A Wirecard era uma importante entidade de lavagem de dinheiro com laços estreitos com o crime organizado e serviços secretos. A TPAs não eram apenas empresas de fachada com transações falsas, elas externalizavam os riscos legais da Wirecard lavando dinheiro sujo", ressaltou De Masi.

Acusado em fuga

O caso da Wirecard não será completamente esclarecido sem o depoimento do ex-diretor de Operações Jan Marsalek, a quem Braun acusou de ser o mentor da fraude.

Com a revelação do escândalo, Marsalek desapareceu ao elaborar uma fuga falsa para a China por meio das Filipinas. Na realidade, ele fugia para Moscou pela Belarus num jato privado.

Ele está na lista de procurados da Europol, e há a suspeita de que esteja vivendo em Moscou com uma nova identidade, protegido pelo Kremlin. Um ex-agente do serviço secreto da Áustria e um político de extrema direita teriam lhe ajudado na fuga.

Marsalek permanece sendo um enigma. O pouco que se sabe sobre sua vida é intrigante, como sua ligação com agências de inteligência russa e a tentativa de integrar uma milícia na Líbia.