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Brasil precisa finalmente punir militares golpistas

26 de novembro de 2024

Há anos país vive com medo dos militares e pisa em ovos para que eles "não se chateiem". Precisamos, finalmente, quebrar esse ciclo para que os horrores da ditadura não se repitam.

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Selton Mello e Fernanda Torres em cena do filme "Ainda estou aqui"
O filme "Ainda estou aqui" colocou o Brasil cara a cara com a ditadura militarFoto: Capital Pictures/IMAGO

"Não é maravilhoso que os jovens estejam finalmente descobrindo o que aconteceu na ditadura militar?": uma amiga me mandou essa mensagem comemorando o fato de que, nas redes e nas conversas, os jovens (e boa parte da sociedade brasileira) estão revoltados com os crimes praticados na ditadura militar, período horroroso da história que se seguiu ao golpe de 1964.

Isso acontece por causa do sucesso do filme Ainda estou aqui, que conta a história da família do engenheiro e deputado federal Rubens Paiva, morto na tortura e "desaparecido" em 1971. O filme, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do engenheiro, e dirigido por Walter Salles, colocou o Brasil cara a cara com a ditadura. Que coisa boa ver todo mundo lembrando do passado e muitos jovens curiosos sobre essa "página infeliz da nossa história".

É extremamente necessário que estejamos olhando para a ditadura e conversando sobre isso. Em quase todas as entrevistas, Marcelo e seus familiares, assim como o elenco do filme, repetem: "É preciso lembrar para que não se repita".

Depoimento de Ida Schrage

É verdade. E isso nunca foi tão óbvio. O país não rememorou o suficiente, jamais puniu os militares e banalizou a ditadura. E por isso quase sofreu um golpe militar de novo. O plano golpista foi revelado semana passada pela Polícia Federal e mostra que um grupo que incluiria o ex-presidente Jair Bolsonaro teria planejado dar um golpe de Estado no Brasil em dezembro de 2022. Além de tomar o poder por meio da força e dos tanques, segundo o relatório da PF, eles pretendiam assassinar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do STF Alexandre de Moraes.

A Polícia Federal indiciou Bolsonaro e mais 36 pessoas por tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado democrático de Direito e formação de organização criminosa. Dos 37 indiciados, 25 são militares. Entre eles estão Augusto Heleno, general da reserva, que foi capitão na ditadura militar e ministro de Segurança Institucional do governo Bolsonaro, e Walter Braga Netto, também general da reserva e ex-ministro da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro. A mesma operação prendeu preventivamente cinco pessoas. Quatro delas eram militares.

Ou seja, no ano em que todos falam sobre ditadura, soubemos que escapamos por pouco de outro golpe militar ao estilo do de 1964.

Como chegamos a isso? Em parte, porque por muito tempo, os horrores da ditadura foram deixados embaixo do tapete e muitos absurdos foram banalizados. Os militares golpistas e os torturadores de Rubens Paiva (e de muitos outros brasileiros) foram anistiados em 1979 e até hoje seus familiares desfrutam de generosas pensões. Segundo levantamento do portal UOL, só os torturadores de Rubens Paiva ganham cerca de R$ 1,8 milhão por ano de pensão.

Glorificação de torturadores

Além de não haver punição, os horrores foram totalmente banalizados. 

Entre os bolsonaristas mais radicais, virou quase moda usar uma camiseta com o rosto e o nome de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos piores torturadores da ditadura e ex-chefe do DOI-Codi, uma casa dos horrores. Em 2016, na noite do impeachment de Dilma Rousseff (a ex-presidente foi barbaramente torturada na ditadura), Jair Bolsonaro, então deputado federal, dedicou seu voto a "Carlos Alberto Ustra, o terror de Dilma Rousseff". Sim, ele glorificou um torturador e fez piada com a tortura de Dilma em pleno microfone, com transmissão em rede nacional. De novo. E nada aconteceu. Ficou por isso mesmo. Deu no que deu. O fã de torturador queria, segundo a PF, dar um golpe junto com os militares.

E agora? A única alternativa decente para que o país não se torne definitivamente um antro golpista é que todos os envolvidos nos planos antidemocráticos e terroristas paguem criminalmente pelos seus crimes, independentemente de patente, de cargo político que já ocuparam ou do número de seguidores que têm nas redes sociais.

Se isso não acontecer, ficaremos presos para sempre nesse ciclo do horror, onde os governos têm medo de punir os militares e "desagradar as tropas". Como disse Marcelo Rubens Paiva em entrevista para a DW, "nós sempre vivemos nessa espécie de chantagem dos militares contra nós, os civis, que deveriam ser quem manda naqueles que têm armas."

É verdade. Há anos e anos o país vive com medo dos militares e pisando em ovos para que eles "não se chateiem". O Brasil precisa, finalmente, quebrar esse ciclo abusivo. Chega de varrer os crimes dos militares para debaixo do tapete. É preciso lembrar e punir para que o horror não se repita para sempre.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.