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Religião

Brasil, país dos santos

14 de março de 2018

Em cinco anos de papado, Francisco valorizou santos da América Latina, por muito tempo esquecidos. Para a colunista Astrid Prange, Dom Hélder Câmara é um dos muitos brasileiros que deveriam ser reconhecidos.

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Dom Hélder Câmara, em foto de 1986
Dom Hélder Câmara, em foto de 1986Foto: Getty Images/AFP/M. Gangne

Caros brasileiros,

"Quero uma igreja pobre para os pobres." Essa frase poderia ser do papa Francisco, que acaba de completar cinco anos de pontificado. Mas não é. É de outro cristão latino-americano de destaque: o bispo brasileiro Dom Hélder Câmara – que morreu em 1999 e tinha muito em comum com o papa.

Tenho grande admiração por Dom Hélder Câmara. E fico feliz com o fato de o papa atual valorizar os santos da América Latina, que por muito tempo foram esquecidos ou negligenciados. A "opção pelos pobres" da Igreja está de volta, graças ao papa Francisco. Confesso que essa opção soava estranha para mim quando cheguei ao Brasil, em 1989. Não era o governo que tinha que se preocupar com políticas de combate ao desemprego e à pobreza?

Astrid Prange
Astrid Prange escreve sobre Brasil e América Latina para a Deutsche WelleFoto: DW/P. Böll

Nas minhas visitas às favelas cariocas, aprendi que não era bem assim. No cotidiano brasileiro, a fé em Deus e as orações pedindo força para seguir a vida tinham uma conotação política bem mais forte que na Alemanha.

Uma frase famosa de Dom Hélder diz tudo: "Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista." A frase vale até hoje. A desconfiança da esquerda persiste. Candidatos desse espectro político continuam sob suspeita de querer desapropriar bens ou causar um caos político e econômico no país.

Dom Hélder considerava a pobreza "uma ofensa a Deus". Lutava pelos direitos sociais a fim de "evitar nesse país, a existência de sub-cidadãos e brasileiros, de segunda classe". Numa cidade como o Rio de Janeiro, onde se pode subir de elevador de um bairro luxuoso para uma comunidade carente em poucos segundos, essa "ofensa a Deus" era nítida. E nos anos 90, tinha muita gente que queria mudar isso.

Um deles era Frei Márcio de Araújo Terra. O franciscano morava ao lado de uma pequena capela num dos pontos mais altos da comunidade do Cantagalo. Toda terça-feira à tarde, eu subia até lá com ele e um pequeno grupo de meninos de rua. Fazíamos compras, carregávamos as sacolas nos becos, conversávamos e cozinhávamos juntos. Esses laços me salvaram quando certo dia um grupo de meninos de rua tentou me assaltar em Copacabana. Um deles me reconheceu e disse para os seus companheiros: "Esta não, é amiga."

Frei Márcio queria criar um clima de solidariedade. Por isso, ele organizava campeonatos de futebol entre os meninos da comunidade e os meninos de rua. E ele conseguiu convencer alguns moradores a "adotar" um desses meninos abandonados e criá-los. Um dos muitos milagres que ele fez.

Eu compartilhava das esperanças do Frei Márcio, que infelizmente faleceu no ano passado. Admirava a modéstia e a coerência dele, que eu não tinha. Porque enquanto eu descia no final da tarde para o asfalto, Frei Márcio ficava lá em cima. Sem ar-condicionado. Sem segurança. E sem telefone.

A partir dessa experiência, cheguei à conclusão que se compreende melhor o Brasil quando se conhece o trabalho pastoral da Igreja Católica nesse país. Porque as pastorais estavam por todos os lados e em todos os cantos do país: pastoral de favelas, pastoral da terra, pastoral da criança, pastoral indígena, pastoral carcerária, pastoral de direitos humanos e muito mais.

Apesar da aceitação do grande trabalho e da população, as pastorais não foram bem vistas pela Igreja no geral, assim como a chamada teologia da libertação. Temia-se que movimentos revolucionários pudessem nascer nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB).

Quando Dom Hélder Câmara se aposentou, em 1985, foi substituído por um clérigo conservador, Dom José Cardoso Sobrinho. A pedido do papa João Paulo 2º, ele "corrigia" a pastoral do antecessor, causando uma evasão enorme dos fiéis na diocese de Recife e Olinda.

As minhas visitas ao Cantagalo também terminaram de um dia para o outro. A capela no morro foi fechada, e o Frei Márcio foi enviado como vigário paroquial a Vila Velha, no Espírito Santo. Depois, ele passou mais de 20 anos em Angola, trabalhando com crianças de rua.

Para mim, ele é um dos muitos santos que existem na América Latina e no Brasil e ainda não foram reconhecidos. Chegou a hora de mudar isso. Com Francisco, a fila está andando. Processos parados por mais de 20 anos foram agilizados nos últimos cinco anos.

Começou com Óscar Romero, o arcebispo de São Salvador que foi beatificado em 2015 e logo vai ser declarado santo. Agora deveria ser a vez de Frei Márcio, Zilda Arns, Leonardo Boff, Erwin Kräutler e Hélder Câmara. Santo subito!

Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter: @aposylt e no site http://www.astridprange.de/portugues/

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