1. Pular para o conteúdo
  2. Pular para o menu principal
  3. Ver mais sites da DW
EducaçãoBrasil

"Apologia ao nazismo em escolas é crime"

28 de março de 2023

Educadora Priscila Cruz vê relação entre intolerância na sociedade, fomentada pela extrema direita, e episódios como o de apologia ao nazismo em escola de SC e afirma que única saída está na formação de professores.

https://p.dw.com/p/4PMyY
Mulher passa em frente a muro pichado com suástica em SP
Pichação em muro de São Paulo: sociedade passa por momento de intolerância e ideias extremistasFoto: Imago/Fotoarena

A segunda suspensão de um professor da rede pública do município de Imbituba, no estado de Santa Catarina, por apologia ao nazismo não é um caso isolado de extermismo em sala de aula no Brasil, observa a especialista em educação básica pública Priscila Cruz. O docente, que já defendeu o nazismo anteriormente, elogiou o líder nazista Adolf Hitler em sala de aula e foi gravado por um aluno. O caso ocorreu este mês, e o professor é reincidente.

Cofundadora e presidente-executiva do movimento Todos pela Educação, Cruz afirma, em entrevista à DW, que a escola é um retrato da sociedade. "Não podemos nos esquecer de que tivemos um presidente da República que fazia apologias, mais indiretas, a esse tipo de violência", pontuou a especialista, que atua em projetos de direito à educação. Ela lembra, ainda, que foi exatamente em Santa Catarina que o movimento Escola Sem Partido mais floresceu, ainda que tenha perdido fôlego nos últimos anos.

Cruz lembra que o nazismo é crime, tão grave quanto assédio sexual. E precisa ser assim encarado pelos gestores escolares, com posicionamentos firmes. No caso do professor de Santa Catarina, ela afirma que ele deveria ser demitido e não apenas afastado, obviamente respeitando-se os trâmites legais.

"É diferente quando tem uma denúncia com flagrante muito claro e quando há um crime muito claro também. Nestes casos tem que ser rápido, e esse professor tem que ser demitido. Há meios. Não é porque é funcionário público que não pode ter demissão."

Segundo a presidente-executiva do Todos pela Educação, ainda que o governo de transição, antes da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tenha se debruçado sobre os casos de extremismo em escolas públicas e da rede privada no Brasil, ainda não se viu, no Ministério da Educação, uma sinalização de política pública para atuar nessa área.

A única prevenção eficaz, segundo ela, reside na formação de professores. "Em qualquer país sério do mundo, formação de professores é um assunto seríssimo, e esse tipo de caso é debatido nessa formação. Quando o professor fecha a porta da sala de aula, é só ele e o aluno. Ele é o grande implementador das políticas públicas educacionais."

DW: No caso de apologia ao nazismo em Santa Catarina, o professor é reincidente. Que sinais de alerta esse episódio traz ao sistema educacional brasileiro?

Priscila Cruz: É muito preocupante, porque se a escola não for um lugar de confiança, de tranquilidade para o debate, de tolerância, é muito difícil aprender e também é muito difícil fazer com que a escola seja um lugar em que os quatro pilares da educação moderna aconteçam: o aprender a aprender, aprender a conviver, aprender a fazer e o aprender a ser. São os quatro pilares de Delors.

Para aprender tudo isso, é necessário um lugar de confiança, onde as pessoas saibam que o professor está ali com o melhor conhecimento disponível, cumprindo o que está previsto na Base Nacional Curricular, o que está dentro da legalidade.

Apologia ao nazismo é crime. Então, ter um lugar de troca saudável e desenvolvimento mútuo é muito importante. Esse tipo de episódio revela algumas questões. Primeiro, que é o retrato do que a sociedade vive.

A escola não é apartada do resto da sociedade. E a sociedade vive um momento de intolerância, vive um momento do ressurgimento de ideias extremistas, de aniquilamento do outro, aniquilamento do inimigo, e de fabricação de inimigos, inclusive, que foi exatamente o caso do nazismo: fabricação de inimigos para ter o poder aumentado.

É tarefa de todos repudiar esse tipo de manifestação, esse tipo de comportamento, para que na escola também não haja esse tipo de episódio. Não é um caso isolado. Circulo por escolas do Brasil inteiro, e há casos absurdos, alunos reclamando de professores, professores reclamando de alunos.

E aí vem o segundo ponto: isso cria um ambiente ruim, tóxico, que faz com que aprendizagens não aconteçam. O aluno tem o desenvolvimento em várias dimensões: cognitivo, emocional, psicológico e físico. Pegando o desenvolvimento físico, por exemplo: qual a confiança de preservação física, do próprio corpo, que um aluno vai ter em relação a um professor que faz apologia ao nazismo?

Será que ele vai ser tolerante em relação ao pensamento diferente? Aprendizado é confiança. Algo pouco falado, quando o assunto é educação, é que aprendizagem acontece a partir de uma conexão entre professor-aluno. E essa é uma conexão de confiança. O aluno que vê o professor fazendo apologia ao nazismo não confia nem em sua integridade física.

Há um terceiro aspecto: Santa Catarina, e em lugares em que isso [episódios extremistas] é mais forte, não por acaso também foi onde o Escola Sem Partido foi mais forte. É um movimento, na verdade, que tem partido. Sempre defendeu que os professores tivessem posicionamentos radicais de direita. Manifestações de esquerda não eram admitidas.

É um movimento que acabou morrendo por seu próprio radicalismo. O que está acontecendo coloca em xeque a ideia de que os professores de escolas públicas e particulares tentam fazer doutrinação de esquerda. O que temos visto é exatamente o oposto. O que vem crescendo é um movimento de intolerância e de manifestações que se sentem livres por serem de direita.

O professor desse caso foi afastado por 60 dias. Isso é correto? Ele é reincidente, pois já havia sido afastado em novembro.

As manifestações violentas na escola são reproduções de manifestações violentas que temos visto nos mais altos cargos de poder. Não podemos nos esquecer de que tivemos um presidente da República que fazia apologias, mais indiretas, a esse tipo de violência.

Apologia ao nazismo é crime tanto quanto importunação física ou assédio sexual dentro da escola. Estamos falando de crime grave. É crime, não é comportamento inadequado. Nesses casos a apuração tem que ser rápida.

Digo apuração porque em qualquer caso é preciso dar direito à defesa, espaço amplo para que todos os envolvidos possam tanto denunciar quanto se defender. Isso é importante, porque vivemos numa democracia, precisamos preservar o processo legal e o Estado democrático de Direito.

Mas nesse caso, em que há flagrante, provas, tem que ter não só o afastamento, mas a demissão desse funcionário público porque isso é absolutamente incoerente com a prática para a qual ele foi contratado. É diferente quando há uma denúncia com flagrante muito claro e quando há um crime muito claro também. Nesses casos tem que ser rápido, e esse professor tem que ser demitido. Há meios. Não é porque é funcionário público que não pode ter demissão. Existe essa crença de que funcionário público é difícil de demitir. É difícil quando a Secretaria de Educação não quer se indispor, quando faz parte de um governo que, na verdade, acha que isso não é crime grave. Mas é. E ele tem que ser demitido.

Estes episódios de extremismo, racismo, apologia ao nazismo, xenofobia, violência nas escolas foram debatidos na equipe de transição de governo antes de Lula tomar posse na Presidência. Está sendo desenhada alguma política nacional de prevenção?

De fato, na transição, esse tema foi discutido. Até mesmo foi produzido um texto. Não tenho notícias de o Ministério da Educação (MEC) ter alguma política formulada nesse sentido. O que temos feito, e estamos apoiando, é melhorar a formação inicial e continuada de professores, que é a melhor forma de prevenção.

A formação prepara o professor para uma atividade extremamente complexa, apesar de a sociedade achar que basta você gostar de criança, basta saber matemática, e isso faz com que a pessoa possa ser professor. Isso não é verdade.

Em qualquer país sério do mundo, inclusive na Alemanha, formação de professores é um assunto seríssimo, e esse tipo de caso é debatido nessa formação. Casos como esse de Santa Catarina precisam ser debatidos e precisam ser usados como material de formação tanto na universidade quanto na formação continuada, que acontece nas escolas.

Se isso não entrar na formação de professores, pode-se fazer campanha, pode-se escrever artigos, pode haver pronunciamento do ministro... pode ser o que for [que não terá eficácia]. Quando o professor fecha a porta da sala de aula, é só ele e o aluno. Ele é o grande implementador das políticas públicas educacionais. É ele que está ali, em última instância, fazendo com que todas as políticas públicas sejam implementadas.

A formação de professores é a única saída de verdade para evitar esse tipo de episódio. Se não quisermos que esta seja a nova realidade da educação brasileira, temos que cuidar da formação do professor, de condições de trabalho decente para esses professores, de trocas saudáveis com outros profissionais. Porque veja: o professor que faz uma coisa dessas se sente absolutamente à vontade para fazer isso dentro daquela escola.

E aí vem outro ponto: a gestão escolar. O diretor ou diretora dessa escola, e de todas as escolas brasileiras, precisa ficar atento, colocar esse tema nas agendas e precisa ter um clima escolar que repudie comportamentos extremistas de professores. Tanto quanto assédio sexual. Da mesma forma que repudiamos comportamentos sexualmente indevido por parte de adultos em relação a crianças e jovens, também temos que repudiar apologia ao nazismo e esse tipo de crime.

Se esse professor não for demitido, há algo que as famílias possam fazer?

Tem que ter pressão em cima da Secretaria de Educação. Claro que a palavra final é sempre do processo administrativo da escola, mas a Secretaria de Educação faz parte de uma estrutura política. A pressão funciona. Tem que pressionar.