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A luta contra muros mentais

8 de maio de 2019

Muitos dizem que uma estrangeira não pode criticar o Brasil, que não tem como avaliar os momentos difíceis que o país está passando. Por quê? Para manter velhas narrativas? Isso me lembra os tempos do Muro de Berlim.

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Foto: Getty Images/S.Huffaker

Caros brasileiros,

Alguém já disse para você que a sua opinião não vale? Que você abandonou o seu país, e por isso não pode e nem deveria mais discutir política brasileira?

Eu tive essa experiência desagradável com a minha pátria, a Alemanha, enquanto era correspondente no Brasil. Quando fazia as minhas visitas e encontrava amigos e colegas dos tempos antigos, muitos me tratavam com certa distância.

Eu era "a brasileira". Diziam que, com esse jeito alegre, eu já não fazia mais parte do "padrão alemão". Não importava que eu já fosse alegre antes de me mudar para o Brasil. As minhas observações sobre a política alemã, muitas vezes criticas, eram recebidas com reserva ou rejeição.

As frases "você ficou muito tempo fora", ou "se o Brasil é melhor, por que você não volta para lá?", me magoavam. Decepcionei-me com o fato que a minha nova perspectiva sobre a Alemanha, uma perspectiva com um olhar de fora, não interessava. Senti-me rejeitada na minha própria pátria. E isso dói.

Depois da minha volta para a Alemanha, os argumentos que antes vinham do lado alemão começaram a aparecer do lado brasileiro. Uma alemã falando de política brasileira? O que é isso? Uma estrangeira que se acha no direito de se intrometer na campanha eleitoral? Que queria dar palpite sobre Lula e Bolsonaro?

Supunha-se que uma estrangeira não poderia conhecer o dia a dia brasileiro, que não teria como avaliar os momentos difíceis que o país estava passando. "Brazil não é para beginners", isso era uma frase educada para dizer que não entendia nada do Brasil.

Ora, se essas críticas fossem certas, o mundo ainda estaria nos tempos dos antigos Estados nacionais do século 19. Naquela época, o intercâmbio político e econômico entre os continentes e países era bem restrita. Os países se definiam através de sua homogeneidade cultural, étnica e política.

Ainda bem que essa fase passou. É óbvio: a nacionalidade não é critério para conhecimento nem para capacidade. Pois o que seria da música clássica sem artistas como o pianista chinês Lang Lang? E a Bossa Nova brasileira sem Stan Getz? E o Jazz sem o baixista dinamarquês Niels-Henning Orsted Pederson?

A música brasileira é linda demais para ser interpretada somente por brasileiros. A obra e a genialidade de Bach e Beethoven é grande demais para ser interpretada somente por músicos alemães. E a política de cada país é importante demais para ser discutida somente por seus próprios cidadãos.

Por que rejeitar a contribuição, por exemplo, de um repórter, um cineasta ou um escritor, que viajou por uma região ou um pais inteiro, falou com pessoas de todos os lugares e camadas sociais e ainda teve acesso privilegiado a informações? Para manter velhas narrativas? Para deixar tudo do jeito que sempre estava?

Na Alemanha, essa luta contra muros mentais ficou muito evidente após a queda do Muro, 30 anos atrás. A crítica de um cidadão da antiga parte capitalista, por exemplo, não era bem-vinda na antiga parte socialista - e vice-versa. Era o paradoxo de uma Alemanha reunificada, mas com os alemães nada unidos.

Mas, na verdade, esse paradoxo é uma benção. Pois a ideia de que os Estados nacionais e a população deles se definiam através de sua homogeneidade cultural, étnica e política revelou-se irreal. A pátria não é só paz e amor. Não é unanimidade. É amargura também. É atração e repulsão.

A reaproximação e reconciliação com a pátria depois de um tempo vivido fora pode demorar anos. No meu caso, demorou mais de dois anos para que eu me reintegrasse novamente na Alemanha, depois de oito anos vividos no Brasil.

Depois desse processo, estou convencida: O rótulo alemão ou brasileiro ou de qualquer nacionalidade é uma faca de dois gumes. A cidadania e a aparência enganam. Experiência e conhecimento não têm passaporte, são como a música: sem limites.

Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter @aposylt e no astridprange.de.

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