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A indústria do passaporte italiano

Karina Gomes
19 de março de 2018

Caso que levou ao cancelamento da cidadania de mais de mil brasileiros com processos envolvidos num esquema de fraude na Itália chama a atenção para redes de corrupção para facilitar obtenção do passaporte.

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Italien Reisepass
Foto: picture-alliance/Lars Halbauer

Certidões falsas, residências que não existem, ameaças e extorsão. A jornada traçada por brasileiros para obter a cidadania italiana pode ser longa e dolorosa. O cancelamento da cidadania de 1.118 brasileiros com processos envolvidos num esquema de fraude na cidade de Ospedaletto Lodigiano, no final de fevereiro, chamou a atenção para estratégias usadas por clientes e assessores para acelerar os trâmites e tornar mais fácil a obtenção do passaporte. Na pequena cidade com pouco mais de 1.500 habitantes, agentes públicos recebiam propina para comprovar a residência de brasileiros na cidade. Alguns, no entanto, nunca chegaram a pisar na Itália.

Leia também: Os caminhos legais para obter a cidadania italiana

A lei italiana é clara sobre o direito de descendentes de serem reconhecidos como cidadãos italianos. A cidadania jure sanguinis (por descendência) é transmitida a partir do ascendente italiano aos filhos sem interrupção e sem limite de gerações. Como as filas para dar entrada no processo administrativo nos consulados no Brasil chegam a mais de uma década de espera, milhares de brasileiros se valem de um dispositivo legal que permite a descendentes de italianos terem o pedido de cidadania reconhecido caso tenham residência registrada num comune (município) italiano.

Essa simples condição, no entanto, tem fomentado diversos esquemas de corrupção. "O problema é que muitos brasileiros trabalham e não podem gastar muito tempo na Itália. É aí que entra o ‘jeitinho brasileiro' de fazer de conta que a pessoas moram lá. Esse é o crime", diz Imir Mulato, diretor da Agenzia Brasitalia, agência especializada em serviços sobre a cidadania italiana.

Devido à falta de informação sobre como o processo funciona, a barreira do idioma e a dificuldade de encontrar uma casa para aluguel temporário na Itália, muitos brasileiros optam por contratar assessorias. Mas nem todas são idôneas.

O empresário Daniel* pagou 3 mil euros a assessores brasileiros que vivem na Itália para assegurar uma casa, mas sofreu um golpe. Quando chegou ao país, os assessores o levaram a um apartamento na cidade de Corbetta, ao contrário do que dizia o contrato, e entraram com o pedido de residência em outro município: Cormano. 

"O pedido foi feito com o endereço da mãe de um assessor, mas disseram que eu não cabia lá", conta o empresário. "Eu nunca quis entrar com o processo sem residir na cidade onde fiz o pedido."

Assim que chegam à Itália, os brasileiros podem se dirigir ao comune onde escolheram fazer o processo e apresentar a documentação completa da linha genealógica. Depois de informar o endereço e entregar um documento assinado pelo proprietário do imóvel, é necessário aguardar um prazo de 45 dias, estabelecido por lei, para que um vigile (fiscal do município) visite a moradia e comprove que o requerente de fato mora no local. Em alguns casos, a visita do vigile não tem hora marcada.

Daniel temia que o vigile fosse passar no endereço em Cormano e não encontrá-lo. Numa conversa de áudio pelo Whatsapp, um assessor diz a ele: "Não procure sarna pra se coçar. Aqui é tranquilo. O vigile toma café e sorvete com a gente, é nosso amigo". Passados alguns dias, o assessor levou Daniel até Cormano. "Segundo ele, o vigile tinha avisado que iria passar naquele dia para checar o endereço. Nós encontramos com o vigile na rua, e ali mesmo ele me fez assinar um papel. Falaram que era só esperar sair o comprovante de residência e, assim, finalizar o processo." 

Daniel continuou insistindo em vão com os assessores para se mudar a Cormano para que não houvesse mais irregularidades no processo. Depois de quatro meses na Itália, as brigas com os assessores atingiram um ápice.

"Vamos retirar seu processo do comune e você vai perder todos os seus direitos", ameaçou outro assessor numa conversa no Whatsapp com Daniel. O vigile passou uma segunda vez para comprovar o endereço na casa em Cormano, mas o empresário não estava no local. O brasileiro teve, então, o pedido de cidadania negado. "Fui muito humilhado, ameaçado, feito de trouxa e enganado até o último minuto. Eles se aproveitam de uma pessoa desinformada para extorquir e roubar", critica.

O empresário voltou ao Brasil e decidiu reiniciar o processo do zero e sozinho e, em três meses, conseguiu obter a cidadania. "Aconselho vir pessoalmente antes de iniciar o processo para se encontrar com os proprietários e visitar as casas", diz.

Segundo Mulato, obter informações sobre o passo a passo do processo é fundamental. "As pessoas vão para a Itália achando que cumprindo os 45 dias para a passagem do vigile está tudo bem, mas não é assim. É preciso morar efetivamente e aguardar a conclusão do processo", diz o diretor da Agenzia Brasitalia. "As pessoas se dizem inocentes, mas se tentam achar uma forma de burlar, o sistema também acabam sendo coniventes." 

Ciclo de enganação

Para casos de descendência por parte materna, é preciso seguir a via judicial. Devido à uma lei antiga, os filhos de uma mulher italiana nascidos antes de 1º de janeiro de 1948 e seus descendentes não têm direito à cidadania. Nesse caso, é necessário recorrer ao Tribunal Civil de Roma para ser reconhecido como cidadão italiano.

Em 2015, Laura* contratou em Londres um casal de assessores – uma brasileira e um italiano – por 3 mil libras para que fizessem as buscas dos documentos dos antepassados na Itália e dos demais descendentes em cartórios no Brasil e contratassem um advogado na Itália para fazer o processo de cidadania pela via judicial.

Depois do pagamento dos honorários e da assinatura do contrato, o contato de Laura com os assessores se tornou impossível. Passaram dois anos e a ‘advogada', que na verdade não possuía diploma em Direito, não cumpriu os serviços prometidos e não devolveu o dinheiro.

"Somos vítimas. Em nenhum momento eu quis tirar vantagem. Eles tinham um escritório chiquérrimo em Londres, ela era muito simpática e tudo indicava que a empresa era idônea. Eu frisei que não queria nenhum jeitinho brasileiro", diz.

O processo pela via judicial não requer que o requerente viaje até a Itália. Todo o trabalho deve ser feito por um advogado italiano contratado na Itália. Mesmo assim, a assessora prometeu que Laura passaria três meses na Sicília, e chegou a enviar fotos do apartamento onde ela iria morar.

"A falsa advogada me enganou dizendo que, apesar de o meu processo ter de ser feito pela via judicial, cartórios de algumas cidades italianas já estavam aceitando o processo, mas era tudo mentira", conta. Em meio à briga com os assessores, o visto de turista de Laura venceu, e ela se tornou imigrante ilegal no Reino Unido.

Em 2006, Ana* pagou 4.500 reais a uma advogada especializada em genealogia para fazer a busca das certidões de nascimento do bisavô que nasceu na Itália e fazer retificações de outros documentos que tinham alguns erros. A advogada, no entanto, fez as retificações com base na certidão de nascimento de outro italiano que tinha o mesmo nome do bisavô. Ela nunca mais respondeu às ligações e e-mails de Ana.

"Nós tivemos a sorte que um parente descobriu o erro, ainda que tarde, pois a sentença modificou o óbito, mas pelo menos não aconteceu o pedido de cidadania, o que nos acarretaria ter uma cidadania italiana falsa", diz. 

A longa espera nos consulados        

Estima-se que 30 milhões de brasileiros sejam descendentes de italianos. Apesar de o direito à nacionalidade italiana ser garantido, a espera pelo reconhecimento via consulados pode durar décadas.

Para solicitar a cidadania italiana via consulado, é preciso preencher uma solicitação e entrar numa fila de espera. No ano passado, o Consulado da Itália em São Paulo convocou as pessoas que registraram o pedido em 2005. A espera, portanto, é de mais de uma década.

Por lei, o prazo para todos os órgãos administrativos italianos atenderem aos pedidos de cidadania italiana é de 730 dias. E essa regra também se aplica aos consulados italianos no Brasil. "Nos consulados, as pessoas são mal atendidas para que desistam da ideia", diz Mulato.

"Infelizmente, eu não posso ir à Itália. Eu trabalho e não posso largar tudo. O meu único meio é o consulado. Espero que minha convocação não saia apenas depois de 2030", lamenta o paulistano Renan Vaccari.

Nesse caso, é possível recorrer à Justiça italiana sem ter de ir à Itália. "É possível recorrer a um juiz do tribunal italiano em Roma, quando o requerente consegue demonstrar que encaminhou o pedido através do consulado, mas o prazo não foi cumprido. A jurisprudência é favorável", explica o advogado italiano Marco Mellone.

O processo dura de um a dois anos. O tribunal analisa os documentos e, se tudo estiver correto, o reconhecimento da cidadania é feito por sentença.

*Nomes alterados pela redação.

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