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A guerra das culturas

29 de maio de 2019

Atos pró-Bolsonaro mostraram que o Brasil vive uma guerra de culturas: a do obscurantismo contra a do esclarecimento. Conquistas seculares de ciência, direitos humanos e democracia estão em disputa.

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Manifestantes com camisetas amarelas agitam bandeiras do Brasil. Uma delas levanta cartaz com dizeres "Presidente Estamos com Você"
Apoiadores de Bolsonaro em manifestação na Avenida Paulista, em 26 de maioFoto: AFP/N. Almeida

Não existe mais muita coisa capaz de me chocar no Brasil – mas uma cena acabou conseguindo. Em Curitiba, apoiadores de Jair Bolsonaro arrancaram uma faixa com os dizeres Em Defesa da Educação da fachada da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Centenas de pessoas aplaudiram.

Ficou evidente que o Brasil vive uma guerra de culturas. As forças do obscurantismo estão atacando o iluminismo. Este mês, duas grandes manifestações levaram milhares de brasileiros às ruas. Elas não poderiam ter sido mais distintas.

Da primeira, participaram sobretudo pessoas jovens, que protestaram pela educação, há duas semanas. Eram negras e brancas e tudo o que há no meio. São o Brasil do futuro. E é por esse futuro que lutam. Porque, se há algo com que se pode solucionar quase todos os outros problemas do Brasil, é a educação.

Através dela, é possível conter as pragas da violência, da desigualdade, da destruição ambiental e da corrupção. Para fazer mudanças no Brasil, seria preciso começar por aí. Os verdadeiros patriotas, portanto, são os estudantes do ensino médio e universitários que vão às ruas contra os cortes do governo.

Também está claro o motivo pelo qual muitos brasileiros são contra a educação para todos. Esses participaram da outra manifestação, que aconteceu no último domingo (26/05), com o intento de apoiar o presidente Bolsonaro, cujo governo está ameaçado de acabar em fiasco. Mas os fãs dele só veem o que querem ver. Em vez de um homem medíocre, misantropo, intelectualmente e moralmente fraco, eles reconhecem um "mito". Nos atos, houve até quem dissesse que Bolsonaro foi enviado por Deus. Que Deus cruel.

O ideal do movimento bolsonarista é um país no qual os papéis sociais (e sexuais) são claramente distribuídos. É um país onde há uma nítida definição de quem fica em cima e de quem fica embaixo. São os próprios apoiadores brancos de Bolsonaro que tiram proveito dessa desigualdade. Primeiro, por meio da legião de trabalhadores baratos e sem formação. E segunda, porque a existência dos pobres faz eles se sentirem superiores.

É assim que devem ser interpretadas as fotos sarcásticas tiradas com sem-teto pelos manifestantes. Eles lucram com as estruturas antigas do feudalismo, que ainda existem no Brasil e que só podem ser rompidas com a educação. Por isso, qualquer esforço de criar igualdade de oportunidades é chamado por eles de "socialismo".

Foto em preto e branco do colunista Philipp Lichterbeck
O colunista Philipp Lichterbeck vive no Rio desde 2012Foto: Privat

O conflito entre o pensamento esclarecido e o antiesclarecimento fica mais evidente quando se trata de religião e racionalidade. A questão fundamental se debruça sobre o que deve ter mais influência nas decisões políticas. Nas sociedades modernas, a resposta costuma ser: a razão. Os novos direitistas brasileiros acham que isso está errado – desde Olavo de Carvalho, o ideólogo do antiesclarecimento, passando pelos ministros Damares Alves e Ernesto Araújo, até o próprio presidente ("Deus acima de todos").

Eles confundem sua fé com conhecimento. Por isso, desprezam o conhecimento dos outros e a ciência, que é complexa e cheia de nuances. Assim, pode-se explicar o fato de Bolsonaro acusar o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de disseminar "fake news" – apesar de ele não ser um especialista em estatística. A ministra da Família, Damares Alves, afirma que a Teoria da Evolução é errada – mas não tem noção de biologia. E o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, acha que as mudanças climáticas não estão acontecendo – contra o consenso de pesquisadores no mundo todo.

Enquanto isso, nas ruas, os direitistas pedem "o fim de Paulo Freire", que nunca leram. Esse desprezo por intelectuais e cientistas é uma característica fundamental de regimes autoritários. É ela, na verdade, que está por trás dos contingenciamentos financeiros na área da educação.

O cenário combina com a notícia de que o Brasil entrou para o grupo de 24 países no mundo que vivem uma "erosão" em suas democracias. A avaliação é do Instituto V-Dem (Varieties of Democracy, ou Variedades da Democracia), da Universidade de Gotemburgo, que tem o maior banco de dados sobre democracias no mundo. O Brasil, segundo os especialistas, está sendo afetado severamente por uma onda de autocratização.

Será que as pessoas que aplaudiram quando a faixa a favor da educação foi arrancada em Curitiba aplaudiriam amanhã, se os livros de Paulo Freire, Jorge Amado e Chico Buarque fossem queimados? Temo que a resposta seja "sim". Essas pessoas acreditam que sua ignorância vale mais do que o conhecimento dos outros. O Brasil está num caminho escuro e perigoso.

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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

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