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MigraçãoVenezuela

"A gente sobrevive": os refugiados venezuelanos em Manaus

26 de junho de 2021

A DW acompanhou a rotina de uma família de venezuelanos na metrópole amazônica, uma sociedade cujas regras eles ainda não entendem, mas que é sinônimo de esperança. Para eles, "tudo é melhor que a Venezuela".

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Refugiados venezuelanos em trânsito: cerca de 20 mil vivem hoje em Manaus
Refugiados venezuelanos em trânsito: cerca de 20 mil vivem hoje em ManausFoto: picture-alliance/AP Photo/M. Mejia

No meio da madrugada, o jovem casal se levanta e se prepara para ir trabalhar. Jesús Parra distribui saquinhos com chips de banana numa bandeja, Rossmary Gallardo faz café, põe bastante açúcar e despeja em várias garrafas térmicas.

Em seguida, o casal venezuelano acorda os filhos, Jessmary, de cinco anos, e Keyler, de um. São pouco mais de duas da manhã em Manaus quando a jovem família sai na escuridão, por uma cidade que é nova para eles, cuja língua mal falam e cujas regras ainda não entendem.

Eles rumam para a grande feira à margem do Amazonas, que já ganha vida logo às primeiras horas da manhã. Ali há diversos mercados, o maior se chama Manaus Moderna e é o local de comércio de tudo o que a Amazônia tem a oferecer: peixes e carne, frutas, legumes, frutos secos.

Rossmary, de 22 anos, e Jesús, de 28, vão fazendo caminho através da aglomeração, sempre na esperança de que alguém compre um café dela, por R$ 1,00, ou de que haja interesse por um saquinho de bananas fritas. As crianças vão junto, o tempo inteiro. Os quatro são parte de uma diáspora crescente de venezuelanos no Brasil.

"Pequena Venezuela" no centro de Manaus

A Agência das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) estima que, dos atuais 5,4 milhões de refugiados venezuelanos em todo o mundo, 260 mil vivem no Brasil, sendo pelo menos 20 mil em Manaus. Lá, são o maior grupo de imigrantes, antes dos haitianos, que totalizam uns 5 mil. E a cada dia vão chegando mais, já que a situação econômica e política da Venezuela piora de semana a semana.

A maioria dos venezuelanos da capital amazonense "se vira" como Jesús e Rossmary, no setor informal, vendendo água, café, frutas e artesanato nas ruas. Ou coleta ferro velho, papelão e plástico. Quando, neste mês de junho, a cidade foi inundada pelo rio, e a feira foi afetada pela enchente, Jesús trabalhou como catador. Algumas mulheres e homens se prostituem, "vendendo café e o corpo", como se diz por aqui.

O constante afluxo migratório da Venezuela resultou na formação de pequenas comunidades em alguns terrenos baldios da metrópole nortista, onde os migrantes construíram moradias simples de madeira, tijolos e plástico. Já se pode prever como, daqui a alguns anos, elas terão se transformado em favelas.

Centenas de venezuelanos também se estabeleceram no decadente centro antigo de Manaus, e em algumas ruas se formou uma colônia que já leva o nome de Pequena Venezuela. Também Jesús e Rossmary vivem no centro, numa velha casa dilapidada, pagando R$ 300 por mês por um quarto de 12 metros quadrados.

Há um banheiro em que não corre água, e eles têm que pegá-la de balde, numa vizinha venezuelana. Como o dinheiro não dá para comprar gás de cozinha, o casal faz comida em duas pequenas placas elétricas. Faz muito tempo que o quarto não é pintado, e a umidade sobe pelas paredes.

"Quando chove forte, pinga do teto", conta Jesús. A família toda dorme num velho colchão em cima do chão. Mas o imigrante não quer se queixar das condições miseráveis: "Nossa senhoria é simpática." Pelo menos, afirma ele, sua família não sofreu qualquer tipo de discriminação no Brasil.

Essa é uma afirmação que se escuta muito por parte dos venezuelanos de Manaus. Talvez isso se deva ao fato de que muitos dos brasileiros na capital também vêm de outras partes do país, e têm vivência de migração. No fim de 2018, ataques violentos na cidade de fronteira Pacaraima, em Roraima, atraíram atenção internacional, quando uma multidão saiu caçando venezuelanos. Mas o episódio permaneceu exceção.

Mais de 2 mil quilômetros por uma vida mais digna

Jesús e Rossmary resolveram deixar seu país no fim de 2020. "Hambre!", é a resposta, quando se indaga o motivo: fome! "O dinheiro que eu ganhava não bastava mais para nos alimentar", relata o pai de família. "Tudo é caro na Venezuela, e os preços sobem a cada dia." Além disso, Rossmary tinha fortes dores no baixo ventre, mas o atendimento médico é extremamente ruim no país. "Lá não tem mais remédios", diz Jesús.

Outro motivo para emigrar foi de ordem política: ele trabalhava para as Forças Aéreas, na manutenção eletrônica de helicópteros russos do tipo Mi-35. "Eu não queria mais servir ao regime [do presidente Nicolás] Maduro, porque ele oprime o povo". Então, desertou.

A família cruzou a Venezuela de ônibus, 1.500 quilômetros até a fronteira brasileira, numa viagem de dois dias. Como o país fechara suas fronteiras, devido à pandemia de covid-19, tiveram que pagar R$ 350 por cabeça a um atravessador, para conduzi-los de noite pelos morros ao leste de Pacaraima.

A experiência foi traumática: a certo ponto, o grupo teve que fugir da Polícia Federal brasileira, e na confusão eles perderam sua filha. Só a encontraram horas depois: fora recolhida por outros refugiados. "Quase morri de medo", conta Rossmary. De Pacaraima, seguiram para a capital, Boa Vista, e de lá para Manaus. Mas há venezuelanos que não têm como pagar o ônibus, e fazem os 750 quilômetros a pé.

Desde a chegada ao Amazonas, porém, a situação do jovem casal não melhorou muito. "A gente sobrevive", resume Jesús. "Nós trabalhamos, mas ganhamos pouco. Ainda assim, estamos confiantes de que a situação vai melhorar depois da pandemia. Tudo é melhor do que a Venezuela."

Há um segundo problema, porém: Rossmary ainda não foi ao médico para ser examinada. Ela diz não ter coragem, por não estar registrada no Brasil. A moça de 22 anos está macilenta, tem manchas esbranquiçadas no rosto. Às vezes, conta, vê tudo preto e tem que se sentar.

Ajuda da Igreja Católica

Pouco antes do meio-dia, o casal resolve encerrar o trabalho: eles conseguiram fazer R$ 23. Têm fome, e se dirigem para uma igreja católica a cinco minutos da feira, onde todo dia se distribui almoço para os necessitados. Hoje o menu é frango com arroz e feijão. "Graças à ajuda, não passamos fome durante a pandemia", comenta o homem.

Depois de acabar de comer, decidem espontaneamente visitar a Pastoral dos Migrantes, cujas dependências ficam logo na esquina, num subsolo. A iniciativa auxilia os refugiados em questões bem práticas do dia a dia. Após esperar um pouco numa longa fila, são recebidos pelas freiras Dinair Pereira e Gema Vicense.

Elas os aconselham a solicitar um CPF, a fim de terem acesso a serviços sociais, como o auxílio emergencial. Quando Rossmary conta de suas dores abdominais, a irmã Dinair chama imediatamente um médico cubano, chegado ao Brasil através do programa Mais Médicos.

Dinair Pereira comenta que aos migrantes falta tudo, mas em primeira linha, orientação: "Eu recebo uma dezena de mensagens por dia, às vezes no meio da noite. Os venezuelanos já me ligam até de Boa Vista. Hoje uma moça me perguntou se eu podia arranjar um colchão para ela dormir."

Após breve exame, o médico cubano manda Rossmary fazer uma tomografia de ressonância magnética, cujos custos as freiras assumem. Fica constatado que a jovem sofre de uma infecção urinária grave, parasitas intestinais e anemia.

Desilusão perigosa

Alguns dias mais tarde, no quartinho em que moram, o casal fala de seus sonhos. Ela espera poder concluir no Brasil os estudos de contabilidade iniciados no país natal e interrompidos pela emigração. Mas sabe que o caminho até lá é longo, também devido à diferenças linguísticas. O marido gostaria de voltar a trabalhar como técnico de helicópteros, mas teme que seu diploma não seja reconhecido no Brasil.

Rossmary e Jesús são um caso típico de imigrantes forçados a começar tudo do zero no novo país. "Nem todos conseguem lidar com isso", afirma a psicóloga Rosana Nascimento, que também trabalha para a Pastoral do Migrante. "Muitos sentem como se fosse uma humilhação."

Após acompanhar vários milhares de migrantes em Manaus, ela registra um padrão de comportamento: "Eles ficam eufóricos de ter conseguido chegar ao Brasil, sonham com uma vida melhor. Mas então notam que também aqui os obstáculos são muito grandes. Aí há o perigo de se recolherem e ficarem deprimidos. Essa fase eles têm que superar."

À tarde, os dois passam seus documentos em revista: Jesús quer arriscar a sorte, simplesmente se apresentando no aeroporto. No meio dos papéis, esbarram numa pequena colagem de fotos, da época em que se conheceram. Rossmary solta um grito: "Você e eu contra o mundo!"