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Mitos em torno dos empréstimos da China aos países africanos

David Ehl | mjp
28 de maio de 2021

Circulam muitos mitos sobre o papel de Pequim como investidor e financiador em África. A DW tenta desmontar alguns dos mais recorrentes.

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Foto: picture-alliance/AP Photo/G. Baker

Mito 1: "A China fica com as infraestruturas quando os devedores não conseguem pagar"

Em março, o Governo do Quénia viu-se forçado a fazer um esclarecimento: mesmo que o país não conseguisse pagar a tempo o empréstimo de 3,2 mil milhões de dólares, o porto de Mombaça não passaria para as mãos da China.

O dinheiro tinha sido utilizado para construir a linha ferroviária entre Mombaça e a capital, Nairobi. No entanto, por várias razões, há menos mercadorias a circular nos caminhos-de-ferro do que o esperado – e menos receitas. O plano de reembolso à China está em risco, mais ainda desde o início da pandemia da Covid-19.

E, neste contexto, vem à memória Hambantota – um porto de carga no Sri Lanka construído com empréstimos chineses. Quando o Governo precisou de dinheiro em 2016, arrendou o porto ao China Merchants Group por 99 anos. Hambantota passou a ser visto como um precedente para uma armadilha da dívida chinesa. Mas essa narrativa tem vindo a ser desmascarada.

"Toda a investigação académica que conheço conclui que não há um exemplo de uma armadilha da dívida, incluindo no Sri Lanka. A China não vai chegar e apreender o aeroporto de alguém. Isso simplesmente não acontece, nem em África, nem em qualquer outro lugar", explica Cobus van Staden, que estuda a relação entre a China e os países africanos no Instituto Sul-Africano de Assuntos Internacionais.

Nos anos 2000, alguns empréstimos foram garantidos com matérias-primas, tais como o petróleo angolano. As apreensões nunca aconteceram. Entretanto, as matérias-primas deixaram de desempenhar este papel de garantia, diz van Staden, em parte porque a China compra agora mais no resto do mundo.

Portanto, o mito número 1 é falso.

Kenia China Infrastruktur | Zuglinie Mombasa - Nairobi
Linha ferroviária entre Mombaça e NairobiFoto: Tony Karumba/AFP

Mito 2: "A China é mais intransigente do que outros credores"

Atualmente, três países africanos negoceiam a reestruturação da dívida com o Fundo Monetário Internacional devido à crise da Covid-19: a Zâmbia, o Chade e a Etiópia. Na Zâmbia, o problema é particularmente grave: o país entrou em incumprimento financeiro em novembro, incapaz de pagar os juros devidos relativamente à emissão de 3 mil milhões de dólares em dívida soberana – e não conseguiu chegar a acordo com os credores. O banco chinês CDB, por outro lado, tinha acabado de conceder um adiamento à Zâmbia.

"Na verdade, há mais precedentes de credores da dívida soberana a processar governos para tentar recuperar algum valor, incluindo bens estatais, do que do lado chinês", lembra o especialista Cobus van Staden.

É a China a nova potência colonial em África?

Kevin Acker, da Iniciativa de Investigação China-África da Universidade Johns Hopkins, em Washington, diz mesmo que Pequim tem bons motivos para esta relativa flexibilidade.

"Um dos principais motores dos empréstimos chineses aos países africanos é a China estabelecer-se como parceiro de desenvolvimento, gerar alguma boa vontade política. Isto traduz-se no reconhecimento da China e não de Taiwan, no apoio às iniciativas chinesas em fóruns multilaterais, como nas Nações Unidas", explica.

Mito número 2: falso.

Mito 3: "Os países africanos têm de obedecer a cláusulas secretas com a China"

Em março, investigadores alemães e norte-americanos publicaram um estudo sobre empréstimos chineses, baseado em 100 contratos com Governos estrangeiros. Uma das conclusões foi a recente insistência da China em cláusulas secretas ou mesmo na negação da existência do próprio acordo.

"Penso que a China insiste no secretismo simplesmente porque está habituada a isso. Não é um país propriamente conhecido por ter informações públicas sobre este tipo de coisas. Não é um país em que a transparência está embutida no sistema", diz Cobus van Staden, que sugere que os países podem mudar as regras do jogo, impondo transparência aos seus contratos de empréstimo. Kevin Acker tem uma opinião semelhante:

"Embora estas cláusulas existam, elas são apenas tão poderosas quanto a lei nacional permite. Se as leis do país requerem a divulgação destes acordos, então não estão a quebrar a cláusula ao divulga-los. Vemos isso nos Camarões, que têm uma excelente base de dados de todos os seus contratos de empréstimo com a China."

Portanto, mito três, em parte, verdadeiro.

Afrika - China | Chinesische Firma baut Strassen in Kenia
Ruas de construção chinesa no QuéniaFoto: AFP via Getty Images

Mito 4: "A Covid-19 levou os países africanos mais pobres a uma maior dependência da China"

A economia chinesa voltou rapidamente às operações normais após a primeira vaga do coronavírus, há um ano, enquanto outros países continuam a lutar para conter as infeções. Isto tem dado alguma vantagem ao comércio externo da China, incluindo nos mercados africanos - embora não haja ainda uma maior dependência do crédito. Pelo contrário, mesmo em 2019, antes da Covid-19, a China concedeu apenas 36 novos empréstimos em África, segundo dados da Iniciativa de Investigação China-África, significativamente menos do que nos anos anteriores.

"Os dias da China simplesmente financiar grandes projetos em países de alto risco e de baixo rendimento estão lentamente a chegar ao fim – e, neste momento, isto está certamente suspenso", diz Kevin Acker. Segundo o investigador, "nos últimos anos tem havido uma certa reflexão interna sobre como pode a China emprestar de forma mais sustentável, como evitar este tipo de situações", uma vez que "quando se pensa numa armadilha de dívida, isto é um problema real para a China, para os bancos chineses".

"Os países não serem capazes de pagar estes empréstimos não é o ideal para a China", frisa Acker. "Isto não significa que a China está a retirar-se do jogo, continua a ser um credor importante", ressalva Cobus van Staden. "Mas há outros atores chineses a entrar em cena, como bancos comerciais, investidores privados e outros grupos."

No entanto, independentemente de novos empréstimos, a dependência mantém-se: os empréstimos antigos vencerão - e as economias enfraquecidas pela Covid-19 são susceptíveis de depender, em alguns casos, tal como a Zâmbia, da boa vontade do credor China.

O mito 4 é parcialmente verdadeiro.