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"Dias contados"

18 de março de 2011

Em entrevista, brasileiro Andrei Netto avalia que trabalho de jornalistas é limitado por imposições de governo líbio. Correspondente ficou oito dias detido por forças leais a Muammar Kadhafi.

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O jornalista brasileiro Andrei Netto
O jornalista brasileiro Andrei NettoFoto: AP

Como vários jornalistas estrangeiros que foram à Líbia, o brasileiro Andrei Netto, correspondente do diário O Estado de S. Paulo em Paris, ficou preso, com o colega Ghaith Abdul-Ahad, do jornal britânico Guardian, em mãos de forças leais ao presidente Muammar Kadhafi. Após oito dias detido, Andrei foi libertado no último dia 10, Ghaith foi solto na passada quarta-feira (16/3). Em entrevista por telefone, Netto falou à Deutsche Welle sobre o que viu e ouviu enquanto esteve no terreno.

DW – O jornalista do Guardian, Ghaith Abdul-Ahad estava preso com você na Líbia, foi libertado cerca de uma semana mais tarde (em 16/3). Logo depois saiu a notícia de que quatro jornalistas do diário norte-americano The New York Times tinham sido detidos, mas que seriam libertados esta sexta-feira (18/3). Porque você acha que estão acontecendo essas prisões de jornalistas na Líbia?

Andrei Netto – Essas prisões estão acontecendo, porque esses jornalistas todos têm em comum uma postura: eles estavam trabalhando fora de Trípoli, em algum lugar do interior do país. Ghaith e eu estávamos trabalhando na região oeste, a equipe da BBC estava na mesma região, na cidade vizinha de Zawyia. Os jornalistas do New York Times estavam trabalhando no leste do país, perto da linha de frente de Benghazi. O traço em comum entre todas essas equipes é o fato de que elas estavam trabalhando em territórios em disputa entre as Forças Armadas e os rebeldes. Na verdade, o que o Governo tenta, muito claramente, é manter o maior controle possível sobre a informação que sai da Líbia. O Governo líbio convidou a ir a Trípoli um grupo de 130 jornalistas de todo o mundo, esses jornalistas estão trabalhando no centro da capital, tem liberdade de discurso, mas estão enquadrados em seus movimentos. Não podem exceder algumas linhas, alguns limites impostos pelo Governo. É um trabalho ao mesmo tempo livre, de discurso, mas um trabalho limitado por imposições do Governo. Em linhas gerais, o Governo líbio tenta cercear a livre informação dentro do seu país. Por isso, faz esse tipo de prisão.

DW – Porque Ghaith Abdul-Ahad foi libertado depois de você?

Andrei Netto – Ghaith é iraquiano e trabalha para um jornal britânico. Desde a véspera da minha libertação, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) do Brasil havia sido mobilizado e estava em contato com o embaixador do Brasil em Trípoli, George Ney Fernandes, para que ele obtivesse a minha libertação junto ao Governo líbio. No caso do Ghaith, a representação iraquiana em Trípoli já havia fechado em função dos conflitos e o embaixador retornou a Bagdá. Com isso, ele ficou sem representação local. Por isso, eu insisti tanto em algumas entrevistas e em contatos com o MRE do Brasil, para que o Ministério se propusesse a representar Ghaith também em Trípoli. O Governo [brasileiro] se recusou, aparentemente, eles não me deram nenhuma resposta. Mas ao jornal The Guardian, eles informaram que não poderiam participar de nenhum tipo de mediação para a liberação dele [Ghaith]. E aí, ficou mais difícil. Quem acabou sendo determinante para a liberação foi a representação diplomática da Turquia, que atendendo a pedidos do jornal The Guardian junto às instituições líbias, obteve essa liberação.

DW – Você avalia que teve seus direitos violados na Líbia? Como?

Andrei Netto – A acusação que pesava contra nós e reiterada pelas autoridades, era a de que não tínhamos visto de entrada no país. Ora, o tratamento dispensado a qualquer estrangeiro num país não é a prisão, muito menos incomunicável, como foi. O que se faz, pelas convenções internacionais, quando se prende um estrangeiro, é imediatamente comunicar ao consulado ou à embaixada de que existe um indivíduo preso em determinadas circunstâncias. E a partir de então, se começa um processo de representação e de defesa do preso. Não tivemos nenhum acesso a isso, até porque as Forças Armadas e o serviço secreto líbio deixaram muito claro – por atos, não por palavras – que pretendia nos esconder nesse período. Na véspera da minha libertação, pedi um encontro com um oficial líbio, que veio até a minha cela. Ele disse: "Não tenha esperanças, vocês não vão sair daqui antes que esse conflito todo acabe". Ou seja, era uma prisão por tempo indeterminado. E, mesmo depois disso, ele disse que ainda teríamos de aguardar todos os processos para saber se seríamos libertados ou não. Nas últimas horas antes da libertação do Ghaith, eu soube que pesaram contra ele acusações de espionagem, e que o serviço secreto estava fazendo um lobby, no seio do Governo líbio, para levá-lo a julgamento, o que é muito grave. Felizmente, isso não aconteceu, aparentemente, com os repórteres do New York Times nem com os repórteres da BBC.

DW – O que foi mais difícil para você, na prisão?

Andrei Netto – A incomunicabilidade. Todo o resto – obrigações na prisão ou violência física, verbal, psicológica, na prisão, de tudo isso a gente passa por cima, na realidade. O que era muito difícil gerenciar era que nós sabíamos que, aos olhos do mundo exterior (família, amigos, editores do jornal), éramos considerados desaparecidos. Ou seja: possivelmente mortos, por estarmos numa situação de conflito. Então imaginávamos que as pessoas estivessem muito assustadas em relação ao nosso paradeiro. E, na verdade, tudo corria bem, apesar de estarmos presos. Era muito angustiante, uma espécie de tortura psicológica que se fazia, em relação a mim e ao Ghaith.

O momento da prisão também foi muito duro, mas a realidade é que poderia ter sido muito pior. O fato de todos os jornalistas, que em algum momento foram presos na Líbia, estarem saindo com vida é por si só muito importante, muito representativo.

DW – Antes de ser preso, você viajou pelo país, fez relatos. Como você descreveria o que você viu e ouviu em campo?

Andrei Netto – Para descrever o que vi no leste da Líbia, é preciso dividir aquele momento em duas partes. Num primeiro momento, quando nós entramos no país, os rebeldes haviam recém-assumido o controle de muitas cidades importantes daquela região, como Nalud, Zintan, Zwara, Al-Zawyia, esta última situada a apenas 30km de Trípoli, o que fazia dela um belíssimo ponto de partida para um eventual ataque à capital. Então, eram cidades que estavam muito próximas de Trípoli e que podiam causar uma ameaça enorme à segurança do regime.

Num segundo momento, com 3 ou 4 dias dentro do país, o que se viu foi uma mudança de clima, quando o governo começou a se reestruturar, as Forças Armadas começaram a retomar o controle das estradas, a espalhar checkpoints por tudo, então a locomoção ficou muito difícil. E, afinal, começaram os contra-ataques. Num primeiro momento destes ataques, o Exército não foi bem-sucedido, não conseguiu retomar o controle das cidades, mas num segundo momento já foram muito violentos e conseguiram retomar o controle. Isso aconteceu em Zawyia e em Zwara, ao menos. Era uma situação muito instável, que começou favorável, digamos, ao trabalho jornalístico, mas que migrou para uma situação de grande cerco [dos rebeldes], e não foi à toa que isso, em algum momento, resultou na nossa prisão.

Hoje, é difícil descrever essa situação, porque, como a imprensa não está mais naquela região – de novo – nós não temos acesso a fontes primárias, não conseguimos testemunhar o que está acontecendo. Segundo as informações que recebo das fontes que estão lá, é um campo de conflito ainda em aberto, pode tender tanto para um lado quanto para outro – depende do momento.

DW – Como alguém que esteve no terreno, você avalia que a causa dos insurgentes pode triunfar?

Andrei Netto – Passei a semana muito preocupado com a própria condição de sobrevivência desses rebeldes. Porque o Governo havia conseguido se estruturar e mandar suas tropas para as principais cidades. Não é à toa que eles chegaram de novo às portas de Benghazi, de onde haviam sido expulsos há duas semanas atrás.

O que era determinante, a meu ver, nesses últimos dias, era justamente essa resolução da ONU. Se não houvesse a resolução das Nações Unidas, a rebelião estaria morta, com os dias contados, tenho absoluta certeza disso. Com a resolução da ONU, eles ganham uma sobrevida. Não é à toa que comemoraram nas ruas da Líbia essa resolução – ou que o Governo tenha travado as próprias ofensivas militares dentro do país. O que os rebeldes talvez estejam esperando dessa resolução e dos eventuais bombardeios dos aliados, é que eles possam fragilizar as defesas militares do regime e equiparar um pouco, tornar mais equilibrado, o poder de fogo do Governo líbio em relação ao poder de fogo que os rebeldes têm. Era uma luta muito assimétrica. Embora os rebeldes tivessem o controle de várias cidades, eles não tinham o poderio suficiente para fazer frente ao Governo. E agora talvez tenha renascido essa expectativa [dos rebeldes] de que o poderio bélico do regime de Kadhafi seja atingido por eventuais bombardeios da França, do Reino Unido e dos Estados Unidos e que esse equilíbrio talvez possibilite o triunfo da revolução. Mas é uma questão em aberto, o regime Kadhafi não acabou, e é bom que se diga que a revolução também não acabou. É um campo de conflito em aberto, e vamos descobrir a resposta nas próximas semanas, não agora.

Autora: Renate Krieger

Revisão: Marta Barroso