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Como o Zimbabué lida com décadas de assassinatos políticos

Martina Schwikowski
27 de novembro de 2020

Valas comuns abertas há décadas ainda são descobertas, e famílias vivem com o trauma de não poderem enterrar seus mortos. Para ativistas, a superação do trauma passa pelo "Governo admitir que enviou soldados para matar".

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Simbabwe Massaker
Foto: Zinyange Auntony/AFP/Getty Images

A Matabeleland é a região sudoeste do Zimbabué que para muitos se tornou sinónimo de recordações tristes e sofrimento. Nas colinas e savanas da região da cidade de Bulawayo foi desencadeada uma operação militar extremamente repressiva foi em  meados da década de 1980.

A investida ficou conhecida como "Gukurahundi", palavra que em Shona - língua da maioria étnica no Zimbabué - significa: "A chuva precoce que lava o joio antes da chuva da Primavera". A expressão refere a série de massacres do povo Ndebele entre 1983 e 1985 no sul do país.

Ainda como primeiro-ministro, Robert Mugabe enviou a infame "5ª Brigada" para a região com o pretexto de tomar medidas contra dissidentes. Tratava-se de apoiantes da União Popular Africana do Zimbabué (ZAPU), liderada por Joshua Nkomo, rival político de Mugabe.

O trauma ainda está presente após três gerações. "Se o luto e os seus rituais falharem, isso não desaparece simplesmente", diz Jenni Williams, ativista dos direitos humanos. "Não há certidões de óbito ou nascimento para as vítimas de massacres ou seus familiares. Muitas vidas estão praticamente paralisadas", diz em entrevista à DW.

Williams acredita que o  perdão pelos crimes cometidos contra milhares de pessoas há quase 40 anos não pode ocorrer sem a iniciativa dos responsáveis. "O Governo deve primeiro admitir que enviou soldados para Matabeleland para matar", opina.

Simbabwe Massaker
Área militar abandonada que teria servido de base para a operação GukurahundiFoto: Jerome Delay/AP Photo/picture alliance

Décadas de cadáveres ocultados

Os massacres estão entre os períodos mais sombrios da história do país desde a independência em 1980. Estima-se que mais de 20 mil pessoas perderam a vida vidas só durante a "Gukurahundi".

No entanto, ainda são encontradas valas comuns de diferentes momentos de violência no Zimbabué, que não ficaram somente restritos à década de 1980. Um exemplo foi o massacre nas minas de Marange em 2008. Militares do Governo de Mugabe teriam matado mais de 200 pessoas durante a aquisição violenta dos campos de diamantes.

Três anos mais tarde, em 2011, 1.000 cadáveres foram encontrados em velhos poços de minas perto do Monte Darwin, a 100 quilómetros a norte de Harare. O Governo divulgou que se tratava de antigos combatentes da guerra de libertação, mortos nos anos 1970.

Alguns analistas, porém, suspeitam que muitas dessas vítimas assassinadas são oposicionistas raptados desde o início da campanha de terror do Estado, que tem sido dirigida em várias ondas desde 2000 contra o partido "Movimento para a Mudança Democrática (MDC)".

"Governo é único obstáculo"

"O único obstáculo no processo de se chegar a um acordo sobre isto é o Governo", diz o realizador Zenzele Ndebele em entrevista á DW. Afinal de contas, o Presidente desempenhou um papel importante nos crimes, e ele [o Governo] não é sincero".

Ndebele passou anos a investigar os assassinatos em Matabeleland. O Presidente do Zimbabué, Emmerson Mnangagwa, que sucedeu a Robert Mugabe, foi um dos ministros da área da Segurança responsáveis pela operação "Gukurahundi". Em 2018, Mnangagwa estabeleceu uma Comissão de Paz e Reconciliação. "A comissão conseguiu pouco, está subfinanciada", diz Ndebele.

Simbabwe Massaker
Governo de Mnangagwa faz progressos lentos, segundo ativistasFoto: Zinyange Auntony/AFP/Getty Images

Mas Williams está convencida de que as negociações com Mnangagwa vão chegar a bom termo: "O Presidente veio a Bulawayo e ouviu-nos. Também prometeu ajuda ao desenvolvimento - um projeto hídrico no rio Zambeze - para a nossa região árida".

A ativista trabalha na "Matabeleland Collective", uma associação de grupos cívicos, que propõe um diálogo com comunidades para discutir o processo sensível de exumar, identificar e enterrar com dignidade familiares mortos. Para Willilams, o Governo deveria revelar e admitir a verdade: "O progresso é lento", diz.

Métodos duvidosos de exumação

O zimbabueano Keith Silika lida com os casos de valas comuns a partir do o Reino Unido, como arqueólogo forense na Universidade de Staffordshire. Para o seu doutoramento, entrevistou mais de 60 testemunhas.

"Seria vantajoso para o Presidente pedir desculpas por essas ações", diz Silika em entrevista à DW. Massacres, violência política e conflitos relacionados às minas de diamantes levaram à ocultação de corpos em valas comuns por todo o país, acrescenta.

Silika critica a lei na qual se baseia a Comissão de Paz e Reconciliação. Segundo o arqueólogo, são cinco páginas que não atendem a quaisquer reivindicações das famílias das vítimas. Afirma também que foram utilizados métodos duvidosos nas exumações, por exemplo, em Mashonaland.

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Robert Mugabe não poupou a oposição enquanto esteve no poderFoto: Alexander Joe/AFP/Getty Images

"As exumações foram realizadas por pessoas não treinadas, apoiantes do partido no poder. Não há registos, ninguém pode rastrear a identificação. Isto é um encobrimento de crimes de guerra", diz.

Sililka constata que, às vezes, não há clamor popular quando uma vala comum é encontrada. "A fadiga das vítimas e o medo profundo na sociedade inibe protestos e a vontade de confrontar o Governo", explica.

O arqueólogo forense juntou-se à força policial do Zimbabué em 1983. Alguns dos seus instrutores participaram da Gukurahundi. "Não tinha ideia da extensão da violência. Foi apenas quando entrei para a polícia britânica em 2005 que tive acesso a informações precisas".

Sililka explica que o choque de décadas de violência sistemática no seu país de origem o levou a estudar criminologia e tentar fazer justiça: "Quero ajudar as famílias a enterrarem os seus mortos e acabar com o trauma".

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