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Cabo Delgado: Levanta-se o véu dos bastidores da insurgência

14 de abril de 2021

Mulheres na liderança militar do grupo armado, recrutamento de crianças-soldado e sofisticação da atuação terrorista são algumas das constatações mais recentes feitas pelo Observatório do Meio Rural em Cabo Delgado.

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Rastos dos terroristas no distrito de MacomiaFoto: Roberto Paquete/DW

O que se sabe hoje sobre os insurgentes que aterrorizam o norte de Moçambique desde finais de 2017? O estudo mais recente do Observatório do Meio Rural (OMR), intitulado "Caracterização e organização social dos 'machababos' [insurgentes] a partir dos discursos de mulheres raptadas", revela que se trata de um grupo mais organizado e bem equipado do que se pensava.

A organização não-governamental moçambicana ouviu relatos de mulheres raptadas pelos terroristas que conseguiram escapar e acredita que o grupo está envolvido em redes de tráfico humano, que chegam até à Europa e ao Golfo Pérsico, e esse pode bem ser um mecanismo de financiamento dos insurgentes.

A DW África conversou com o autor do estudo, João Feijó, sobre os "tentáculos invisíveis", mas poderosos, do grupo terrorista. O investigador deixa ainda algumas sugestões para quebrar o "círculo vicioso de violência" em Cabo Delgado.

DW África: À semelhança de outros grupos terroristas que operam em África, os insurgentes no norte de Moçambique também começam a ser conhecidos pelo rapto de mulheres e raparigas. Já há indícios claros de que este grupo estará ligado a redes de tráfico humano no estrangeiro?

Mosambik I Tausende Vertriebene fliehen vor den Angriffen in Cabo Delgado
João Feijó, investigador do OMRFoto: DW

João Feijó (JF): O que existe neste momento são testemunhos de jovens mulheres que estiveram sequestradas por estes grupos localmente designados de machababos e que conseguiram fugir. Conseguimos perceber que há milhares de mulheres raptadas e que estão nestas zonas ocupadas pelos machababos. As que regressam dizem que, de facto, são acantonadas em grupos de 60 a 80 de forma provisória e que depois seguem para um destino final múltiplo. Algumas vão para as bases e são esposas desses indivíduos, onde têm algumas funções logísticas, algumas até com funções militares, até mesmo de combate. Há relatos de mulheres a comandar tropas e com armas. Depois há um grupo de jovens meninas, muito bonitas, que diziam que tinham sido selecionadas para irem para a Tanzânia estudar. Presume-se que parte dessas meninas estejam envolvidas em rotas de tráfico internacional, sobretudo por cruzarmos esta informação com outra informação que existe de rotas de tráfico um pouco pela África Oriental, dirigida a partir dos países dos Grandes Lagos, mas também alguns rumores da existência destes fenómenos na Tanzânia ou no Quénia, para o norte de África, zona do Golfo ou até Europa de Leste. Essa hipótese ganha alguma sustentabilidade, que possa ser portanto um mecanismo de financiamento do grupo armado.

DW África: E além disso há relatos de que os terroristas estão a recrutar crianças-soldado, a treiná-las para matar. É um cenário preocupante para Moçambique. Já se devia estar a pensar em apoio social em formas de desradicalizar estas pessoas quando o conflito terminar?

JF: Claro que sim, é essa a grande sugestão deste trabalho. Tal como aconteceu na guerra dos 16 anos entre a RENAMO e o Governo de Moçambique, numa determinada fase a guerra era feita por crianças e jovens soldados. Aqui estamos a ver que estes grupos recrutam crianças pré-adolescentes, na casa dos 12-13 anos. Há relatos de treinos militares com catanas, há uma grande ideologização, são doutrinadas com um discurso de ódio, de revolta e de vingança. Estes jovens são depois protagonistas de assassinatos e os relatos são de que, quando há assaltos, muitos dos atacantes são adolescentes. Eventualmente poderá também haver rotas de tráfico para outras zonas. Há um grande mistério sobre o que se passa do outro lado, este estudo levanta apenas um bocadinho a cortina.

Mosambik I Tausende Vertriebene fliehen vor den Angriffen in Cabo Delgado
Deslocados internos em MetugeFoto: DW

DW África: Do estudo que fez o OMR, sabe-se agora que o grupo é muito mais organizado e bem equipado do que se pensava no início?

JF: O grupo foi-se transformando. No primeiro ataque, em 2017, atacavam principalmente aldeias isoladas, sobretudo com catanas. Mas a partir do ano passado este grupo adquiriu uma maior internacionalização, nota-se que têm mais treino, mais indivíduos a treiná-los taticamente e mais organização militar e capacidade de ocupação de sedes distritais. No ano passado ocuparam quatro sedes distritais: Mocímboa da Praia, Macomia, Quissanga e Muidumbe. E este ano fazem um ataque a Palma que era provavelmente a zona mais protegida de Moçambique. Conseguiram entrar por ali, durante dez dias estiveram em Palma e provocaram um grande impacto. Este grupo foi evoluindo em termos de capacidade bélica e de organização, foram aproveitando do facto de serem subestimados pelas Forças de Defesa e Segurança e cresceram em capacidade.

DW África: Este estudo também aborda um aspeto importante que é a capacidade de resposta das forças moçambicanas, que também têm gerado violência. Que recomendações faz o OMR para ajudar as populações que sofrem com este círculo vicioso?

JF: A questão é que agora temos se interromper este círculo de violência, porque as pessoas saem fugidas e quando chegam aos locais de reassentamento enfrentam a desconfiança das FDS, que é normal que desconfiem. Depois enfrentam o problema da reintegração, da ajuda alimentar - há muitos relatos de injustiça da distribuição de alimentos -, sofrem problemas de integração. Então, entra-se aqui num círculo vicioso de pobreza, porque as pessoas muitas vezes chegam a um ponto em que não têm nada a perder. Muitas vezes preferem voltar para os locais onde estavam, tornando-se facilmente recrutáveis por outros.

Não sabemos quais são os tentáculos que eles têm porque são muito invisíveis, mas a verdade é que eles existem. A melhor estratégia de contrainsurgência seria precisamente o desenvolvimento económico. É preciso estudar e envolver os líderes locais com capacidade de influência nas populações e envolvê-los localmente como mediadores, como indivíduos que pudessem de alguma forma resgatar os jovens que estão do outro lado, oferecendo-lhes amnistias e capacidade de reintegração.

A violência terrorista contra crianças em Cabo Delgado