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"A situação em Cabo Delgado parece-nos fora de controlo"

Marcio Pessôa
10 de janeiro de 2020

Diretor do IESE sugere que Moçambique crie grupo com países da região para lidar com a crise em Cabo Delgado. Para Salvador Forquilha, solução passa pelo fortalecimento das instituições do Estado e ações de inclusão.

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Salvador Forquilha defende que países criem grupo para lidar com a criseFoto: DW/B. Darame

Os investigadores do Instituto de Estudos Sociais e Económicos de Moçambique (IESE) estão em Cabo Delgado a visitar as áreas aterrorizadas por grupos armados. Após dois anos de insurgência violenta no norte de Moçambique, o saldo é de centenas de mortes e dezenas de milhares de afetados. Os pesquisadores chegaram a Mocímboa da Praia dias depois do primeiro ataque de insurgentes a instituições do Estado, registado no dia 5 de outubro de 2017. Em setembro de 2019, o instituto publicou o primeiro estudo sobre o tema, relacionando os ataques com a radicalização islâmica na região.

Diante da complexidade do que os pesquisadores viram no norte do país, o IESE realizou em dezembro uma conferência internacional "à porta fechada" em Maputo, em que convidou integrantes do Governo, investigadores que observam no terreno casos semelhantes na Tanzânia, Nigéria e Mali e testemunhas dos ataques em Cabo Delgado. O evento teve uma sessão inteira dedicada a testemunhos.

Mosambik Anschlag in Naunde
Casa queimada por insurgentes em Naunde, Cabo DelgadoFoto: DW/A. Chissale

Em entrevista à DW África, o diretor e pesquisador do IESE critica a falta de cuidado de opiniões sobre a insurgência sem base em observações in loco e elementos concretos. Salvador Forquilha diz que esta insurgência sofreu uma espécie de transformação - de um levante "meramente religioso" para um "movimento militarizado". O pesquisador considera impossível que a crise de segurança na região seja resolvida sem um intercâmbio com outros países que enfrentam fenómenos semelhantes, e sugere que Moçambique se deveria aproximar da Tanzânia, Quénia e Uganda.

Forquilha defende também o fortalecimento das instituições do Estado - inclusive do Exército, da polícia e dos órgãos de administração pública - e considera que os focos de crise, tanto no norte como no centro de Moçambique, devem ser enfrentados também com ações concretas de inclusão económica, política e social, para que todos os moçambicanos se sintam a integrar "um projeto de país". O pesquisador considera que adotar medidas nesse sentido será o principal desafio que o Presidente Filipe Nyusi enfrentará no segundo mandato, se quiser lidar adequadamente com a crise em Cabo Delgado. 

DW África: A imprensa moçambicana noticiou pelo menos dois eventos violentos em Cabo Delgado já em 2020. Após dois anos, é possível dizer que a insurgência está baseada na radicalização religiosa?

Salvador Forquilha (SF): É um fenómeno extremamente complexo, cuja dimensão armada começou no dia 5 de outubro de 2017, quando ocorreu o ataque mais conhecido às instituições do Estado, na vila de Mocímboa da Praia, no norte de Cabo Delgado. Desde então, o fenómeno tornou-se mais complexo. Infelizmente, há pouca informação - um ou outro órgão de imprensa tem difundido algumas notícias para fora da região - mas eu estou convencido de que o grosso do que acontece realmente não é de conhecimento público. Nós decidimos fazer uma pesquisa preliminar sobre o assunto e publicámos [em setembro de 2019]. Depois, montámos um programa de pesquisa dentro do IESE inteiramente focalizado no problema de Cabo Delgado. Ali, provavelmente há vários conflitos, e tentámos seguir um pouco mais as pistas deste fenómeno com base em trabalho de campo.

O relatório que publicámos tenta sumarizar os elementos que encontrámos no campo e dar algumas indicações sobre as origens e as dinâmicas do fenómeno e, a partir daí, dentro do grupo de pesquisa, tentámos desenvolver outros projetos. Há uma insurgência extremamente complexa, que não pode ser reduzida a uma única causa. Há muitos elementos visíveis que contribuem para o desenvolvimento da própria insurgência. Ao ponto de hoje parecer que estamos perante uma situação completamente fora de controlo. Claramente há uma dimensão religiosa importante, mas há elementos ligados à própria dinâmica da economia local muitas vezes ilícita - tráfico de madeira, marfim, pedras preciosas... Há uma economia ilícita local que acaba por desenvolver grupos criminosos que, por sua vez, alimentam o próprio conflito. Há necessidade de aprofundar mais [as pesquisas] para identificar esses outros grupos - além do grupo com uma tendência um pouco mais religiosa. Pelo menos, no início, [a questão religiosa] era o caso, mas há a possibilidade da existência de outros grupos que se aproveitam da situação caótica que se vive na zona.   

DW África: O que deve fazer de diferente o Governo do Presidente Filipe Nyusi, que caminha agora para o segundo mandato, para lidar com essa crise no norte do país?

SF: A situação está num ponto tal que é muito difícil trazer uma receita. Talvez o Governo, em algum momento, tenha perdido a oportunidade de lidar com o assunto de uma forma um pouco mais apropriada. Lembro-me das primeiras declarações da polícia a exigir que [os insurgentes] entregassem as armas em uma semana, [caso] contrário iriam "limpar" o grupo completamente. Não se lida com uma situação desta natureza desta maneira. Moçambique poderia também ter observado experiências de outros países - como a Tanzânia, Quênia, Mali, Nigéria, Burkina Faso - para fazer face a essa questão. Mas é claro que isso exige também um conhecimento profundo sobre a própria realidade.

"A situação em Cabo Delgado parece-nos fora de controlo"

Penso que é importante investir na busca e análise de informações sobre o fenómeno. Por outro lado, penso que vai ser muito importante fortalecer as instituições. Nenhum país pode fazer face a um fenómeno dessa natureza com instituições fracas. É preciso ter Exército, polícia, serviços de inteligência e administração fortes para enfrentar essa situação. Não esqueçamos também que o país está a enfrentar focos de instabilidade na região centro. Vai ser muito importante [neste segundo mandato] investir na inclusão social, económica e política, para que os moçambicanos se sintam parte de um projeto comum de país. Eu penso que aqui, eventualmente, reside o desafio maior para todos os problemas que o país tem estado a enfrentar nos mais de 40 anos da sua independência. O novo Governo vai ter que revisitar todos esses problemas, que não são novos, mas precisa-se de mais criatividade para lidar [com eles], e também para evitar que todo o esforço que tem sido envidado para reduzir a pobreza não seja sem resultados. Claramente, o cenário atual é extremamente complicado e eu não sei como é que o Governo vai fazer para lidar com dois conflitos quase simultâneos no norte e no centro.   

DW África: Segundo a ONU, pelo menos 300 pessoas morreram e 60 mil foram afetadas pelos ataques em Cabo Delgado. Qual é a sua impressão sobre esses números?

SF: Há zonas nesses distritos afetados onde a população já não está, e é perigoso circular. Há aldeias que foram completamente abandonadas. Eu tenho consciência de que o problema seja um pouco maior do que esses números [indicam]. Quando a gente fala com os concidadãos nesses distritos, o sentimento é de frustração e abandono. É um drama de todos os dias: dormir sem saber se vai acordar bem no dia seguinte, se a aldeia vai ser atacada ou não, se um membro da família será raptado ou morto. Ou seja, este sentimento de incerteza e frustração num país onde o discurso oficial é que conseguimos a paz definitiva… Isso é impressionante. É como se houvesse uma parte esquecida de moçambicanos. Esse é um assunto muito sério, porque sabemos que sentimentos de exclusão e marginalização podem produzir e alimentar conflitos.

[No último estudo,] nós tentámos seguir a via religiosa, ver como elementos de um determinado grupo, numa determinada altura, começaram a pregar um Islão que não era comum na zona, com uma tendência mais radical. Líderes religiosos locais disseram que informaram isso ao Governo, mas receberam a resposta de que é um problema que as lideranças tinham de resolver com a Justiça, porque o Estado é laico. Ainda hoje as pessoas se lembram disso. E a ideia que fica é que tudo havia sido avisado. Não se pode ter certeza, mas parece que, se o Estado tivesse tomado medidas à altura, talvez não tivéssemos chegado onde chegámos. Isso marca as pessoas: a ideia de estar perante um Estado que não age quando é necessário agir.   

DW África: Há um certo ceticismo sobre a tese da radicalização religiosa como componente importante nesses conflitos em Cabo Delgado. Como reage a isso?

SF: Muitos dos analistas que nós temos nem sequer puseram os pés lá. Infelizmente, eu tenho de dizer isso. [Sabem] por via de alguém que está lá ou ouviram dizer. Realizámos no início de dezembro uma conferência internacional em Maputo à porta fechada. Fizemos isso porque não queríamos distrações de gente que vem com opiniões sem nunca ter estado no terreno. O nosso interesse era trazer experiências de outros países sobre a radicalização para colocar Moçambique numa perspetiva comparada. Trouxemos para a conferência pessoas que vivem nos distritos assolados pelo conflito. Houve uma sessão inteira do evento dedicada a testemunhos, não era uma coisa inventada. As pessoas descreveram o que vivem no dia a dia e como elas estão a ver o problema. Isso reforçou mais a nossa perceção do problema.

A dimensão religiosa não é a única neste momento. De facto, pode ter sido no início, mas houve uma mudança muito importante. Um movimento que era meramente religioso passou a ser um movimento muito mais militarizado. É importante para nós compreendermos esse salto. A coisa mais interessante para nós foi ver as similaridades das dinâmicas entre os casos em Moçambique e Tanzânia - e mesmo comparado com o Mali. O problema é que, lamentavelmente, nós não temos uma tradição sobre um debate aberto sobre as questões que mexem com o país de facto. Vejo que um dos desafios que temos como país é abrir espaço para debate e buscar soluções para o problema. Não vejo como conseguiremos chegar à solução sem um debate profundo, franco e baseado em factos. Para muita gente, evocar a dimensão religiosa é como se estivéssemos a fazer um ataque a uma determinada religião. Ora, ninguém está a querer dizer que isso se trata do Islão. O fundamentalismo pode existir em qualquer confissão religiosa e mesmo fora das confissões religiosas. Neste caso, as pessoas que estão a sofrer mais com [os ataques] professam o Islão. Isso repete-se em outros contextos - na Tanzânia, na Nigéria, no Mali, mesmo fora de África. Quem desacredita dessa perspetiva precisa de dizer com base em quê. Dentro do nosso programa, estamos a examinar também outras perspetivas. Se quisermos chegar a resultados consistentes, será importante fazer pontes com outros pesquisadores de outras instituições que estão a trabalhar sobre esse fenómeno. Nós estamos abertos e a incentivar isso. 

Mosambik Pemba  Eid al-Fitr
Comunidade muçulmana também é vítimaFoto: DW

DW África: Centenas de pessoas foram presas e processadas. Isso não é uma reação importante do Estado?

SF: Qualquer outro Estado agiria da mesma forma, levando pessoas ao tribunal. Mas entre levar as pessoas para o tribunal e encontrar uma solução para o problema há uma grande distância. Eu não sei o que está a ser feito depois dos julgamentos. Imagino que há informação preciosa recolhida dos presos. Oxalá a coisa esteja a decorrer da melhor forma para se encontrar a estratégia mais adequada para resolver o problema. Agora, eu estou convencido de que não vai ser possível chegarmos à solução sem um trabalho de terreno mais apurado. Não se resolve problemas dessa natureza sentado num gabinete. A cooperação com outros países que estão a enfrentar problemas parecidos é muito importante para o próprio país.

DW África: Moçambique deveria tomar a iniciativa de criar um grupo regional de crise semelhante ao G5 do Sahel?

SF: Não sei se à semelhança do G5 do Sahel. Esse grupo funciona com muitos desafios, mas tem o mérito de ter a consciência de que [os seus integrantes] estão a viver um problema comum e de que o processo de busca de solução também passa pela partilha de informação, coordenação e cooperação. Moçambique, Tanzânia, Quénia e talvez Uganda - mesmo que não seja para formar um grupo - [deveriam iniciar uma] cooperação e coordenação e aprofundar isso, não sob o ponto de vista militar, mas sob o ponto de vista de pesquisa, que é uma dimensão que às vezes fica um pouco para trás. Mesmo que não seja para formar um grupo à semelhança do que acontece no Sahel, estou convencido que os países da região precisam de reforçar a cooperação na luta contra o fenómeno. Mas para isso é preciso reconhecer que há um problema e que o problema é dessa natureza, vai mais na linha do extremismo violento. Quando se começa a dizer que não é nada disso, mas é outra coisa, sem ter evidências sobre essa outra coisa, fica muito mais complicado encontrar a solução. 

DW África: Analistas levantam as componentes dos recursos naturais e das atividades ilegais como fundamentais para a insurgência em Cabo Delgado. Qual é o peso dessas componentes nessa "panela" que compõe a crise na região?

SF: Esses são elementos a tomar em consideração, mas certamente não são os únicos elementos. Eu colocaria isso dentro da "panela", ligando a outros elementos. Hoje a situação evoluiu consideravelmente. Muito provavelmente estejamos numa espécie de sobreposição de conflitos na zona, que coloca em cena grupos criminosos ligados a essa economia ilícita. Esta é a razão pela qual, no nosso programa de pesquisa, há um grupo de colegas que começou a investigar a economia política de Cabo Delgado. Obviamente toda esta questão ligada aos recursos naturais será analisada por esta equipa. Sim, são elementos que devem ser tomados em consideração, mas é preciso ressalvar que é importante ligar esses elementos a outros que existem, nomeadamente aos elementos que têm uma dimensão religiosa importante, que nós mencionámos no nosso estudo.  

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