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O alemão lusitano do Sul do Brasil

Soraia Vilela20 de abril de 2004

Embora não exista entre os descendentes de alemães no Sul do Brasil qualquer unidade linguística, cidadãos bilíngües oscilam entre o uso do português e do alemão, criando vocábulos híbridos e uma sintaxe própria.

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Nova geração fala um alemão diferente<br> ©G.SchüürFoto: Germano Schüür

O apanhado de diferentes dialetos falados no Sul do Brasil chega a ser chamado por alguns teóricos de “riograndenser hunsrückisch”: o Hunsrück é uma região do oeste alemão, localizada perto dos rios Reno e Mosela e próxima à atual fronteira com Luxemburgo. “Riograndenser” significa “do Rio Grande”.

Apesar dos 180 anos em solo brasileiro, da mistura de diferentes dialetos entre imigrantes e do contato destes com a língua portuguesa, essa “variação intra e interlingüística”, como define o teórico Cléo Altenhofen, continua viva. Estima-se que haja um milhão de bilíngües nesta região.

Assimilação e resistência

Mesmo com o constante processo de “assimilação” destas comunidades pelo português brasileiro nas últimas décadas – que teve seu ponto alto durante a ditadura de Getúlio Vargas – o alemão falado em regiões do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná resiste.

Tema de diversas teses acadêmicas, tanto no Brasil quanto na Alemanha, o mosaico lingüístico presente em regiões rurais do Sul do país deixa entrever não apenas aspectos da cultura local, como revela detalhes da história da imigração alemã no país.

“Não existe um dialeto teuto-brasileiro unificado. A língua falada pelos descendentes de alemães é, de uma forma ou de outra, formada por diversos dialetos e misturada com o português. Os dois fatores dependem do grau de escolaridade daquele que fala. Os mais velhos, na zona rural, falam mais alemão que os jovens nas cidades.

É admirável que, em várias regiões do Rio Grande do Sul, o alemão continue sendo a primeira língua, aquela predileta na comunicação dentro da família e entre amigos”, comenta a pesquisadora Ingrid Margareta Tornquist, autora da tese Isto aprendi com minha mãe. Linguagem e conceitos éticos entre teuto-brasileiros no Rio Grande do Sul, em entrevista à DW-WORLD.

Língua da família e entre vizinhos

Em uma pesquisa realizada em 1993 por Lourdes Claudete Schwade Sufredini em Legado Antunes, uma pequena comunidade no interior de Santa Catarina, verificou-se que as variações da língua alemã ainda eram uma constante no seio familiar.

Mais de 75% dos entrevistados afirmaram falar quase sempre alemão com os pais e avós, enquanto os 25% restantes disseram fazer uso ocasional do idioma. Em várias comunidades como essa, especialistas apontam que o alemão continua sendo o idioma preferido na comunicação familiar e entre vizinhos.

Trata-se, na grande maioria dos casos, de uma mistura de dialetos de várias regiões alemãs, entre elas Hunsrück, Vestfália e Pomerânia (hoje em grande parte território polonês). Este idioma desenvolvido pelos imigrantes alemães no Brasil vem despertando o interesse de especialistas, que apontam o perigo de um desaparecimento completo destas variantes dialetais.

Já sensivelmente distante da língua oficial da Alemanha de hoje (Hochdeutsch), esse idioma teuto-brasileiro está, por exemplo, isento de quaisquer anglicismos, muito presentes na Alemanha atual. Estes, segundo Tornquist, não são nem mesmo compreendidos pelas comunidades bilíngües brasileiras.

Português “urbano” e alemão “arcaico”

“O português passou a ser símbolo da cidade, das camadas mais altas da população, do saber, da escola e de uma geração mais jovem. O hunsrückisch ficou associado às zonas rurais, à origem, à família, à solidariedade entre os grupos e às gerações mais velhas”, descreve Cléo Altenhofen o processo de “lusitanização das novas gerações” em determinadas comunidades do Rio Grande do Sul.

O respeito à língua – transmitida de geração a geração, mesmo quase dois séculos após a chegada dos primeiros imigrantes – é uma prova do caráter de “ilha lingüística” (Sprachinsel) das colônias alemãs na região Sul do Brasil.

Fenômenos semelhantes são analisados por especialistas entre os descendentes de alemães na Rússia, por exemplo, onde se observa um fenômenos semelhante ao ocorrido no Brasil: o uso de formas de linguagem arcaicas, a convergência de vários dialetos e a interferência do idioma dominante (russo e português, nos dois casos) no desenvolvimento do alemão.

Das Aviong, die Schuhloja, das Canecachen.

Alles gut?

O falante bilíngüe teuto-brasileiro se apropria com freqüência de expressões e vocábulos da língua portuguesa, já a partir do cumprimento inicial alles gut?, uma tradução literal do brasileiro tudo bem?, em detrimento da forma corrente na Alemanha de hoje, wie geht`s?, e da declinação correta alles gute (que significa tudo de bom e não como vai).

Segundo a pesquisadora Tornquist, descrições do mundo animal e da flora, bem como a denominação de meios de transporte são dois exemplos clássicos de formas híbridas usadas por essas comunidades de teuto-brasileiros, como no caso de rossa (roça/Feld), fakong (facão/grosses Messer), aviong (avião/Flugzeug), kamiong (caminhão/Lastwagen).

Entre outras apropriações estão palavras em português, cujo diminutivo é formado como no alemão: canecachen = caneca (port.) + chen (dim. alemão). Ou mesmo aglutinações híbridas como em schuhloja (loja de sapatos, sapataria) ou milhebrot (pão de milho).

Interferências sintáticas também são freqüentes, detectadas na inversão da ordem da palavras na frase ou no uso “incorreto” de preposições, como por exemplo träumen mit (sonhar com, ao invés de träumen von – sonhar de – do alemão moderno); bleiben mit Dir (literalmente ficar com você, no lugar do bleiben bei Dir).

Além disso, pode ser observada ainda uma enorme apropriação do português no uso dos verbos, que “ganham” na linguagem do teuto-brasileiro terminações em alemão: lembrieren, namorieren, sich realisieren, ofendieren, respondieren.

Atlas lingüístico

É interessante notar ainda como o português falado por comunidades bilíngües se difere daquele falado por outras comunidades no Sul do Brasil: enquanto estas demonstram clara predileção pelo uso do tu, constata-se “uma variação significativa que aponta para o emprego do você nas áreas bilíngües, devido à forma de aquisição do português (padrão), que se deu durante muito tempo essencialmente via escola”, como descreve a pesquisadora Paula Biegelmeier Leão em sua tese Variação de “tu” e “você” no português falado no Sul do Brasil.

Com o intuito de catalogar as diversas variações aí presentes, foi criado o Atlas Lingüístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil (Alers), uma co-edição da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade Federal do Paraná. Com cerca de 300 mil dados orais, colhidos em 275 pontos dos três estados, o Alers procura registrar a variante lingüística dominante em cada localidade cartografada.

Além de ser um importante subsídio para o registro da história de ocupação destas regiões, o atlas serve como importante fonte de informação sobre a variedade do português falado pela população rural de baixa escolaridade em toda a região Sul do Brasil.