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HistóriaGuiné-Bissau

“O 25 de Abril nasceu na Guiné”, diz Manuel dos Santos

Marcio Pessôa
6 de setembro de 2014

"Manecas" foi um dos responsáveis pela inovação bélica que acabou dando um rumo inesperado à guerra de libertação. Ele lembra que soldados de ambos os exércitos confraternizaram depois da guerra.

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Foto: casacomum.org/Documentos Amílcar Cabral

O ex-ministro das Finanças da Guiné-Bissau, Manuel dos Santos, era um estudante cabo-verdiano de Engenharia em Lisboa quando decidiu se juntar às fileiras do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Manecas, como era conhecido, iniciou em postos de menor hierarquia na guerrilha.

Em 1973, já era o “comandante Manecas” quando entrou para a história da guerra de libertação da Guiné por ser protagonista de uma inovação bélica que mudou o rumo do conflito. Chefiou um grupo de guerrilheiros que foi para a Criméia, na então União Soviética, para aprender a usar os mísseis antiaéreos Strella.

Nesta entrevista à DW África, Manecas fala sobre o poder de fogo da guerrilha, explica como o PAIGC acabou influenciando na “Revolução dos Cravos” e lembra de confrontos cruciais para a libertação da Guiné.

DW África: Era um estudante cabo-verdiano em Lisboa que acabou se tornando um comandante na Guiné?

Manuel dos Santos (MS): Podemos dizer que o PAIGC era uma espécie de meritocracia. Você não chegava a postos de responsabilidade sem dar provas primeiro. Eu cheguei a ser um dos comandantes aqui na Guiné, mas comecei em baixo. Comecei mais baixo do que se estivesse indo para o exército português. Com as habilitações que eu tinha, não sendo particularmente covarde, fui subindo degrau a degrau até ser um dos seis comandantes principais da [guerra de libertação] da Guiné.

DW África: O senhor é conhecido também por uma inovação bélica dos guerrilheiros.

MS: Em 1973, eu era o chefe de um grupo que foi treinado na União Soviética para manusear armas antiaéreas eficientes - foguetes. Em qualquer anti-guerrilha, a força aérea é decisiva para o adversário. O que nós fizemos foi terminar com a supremacia aérea portuguesa na Guiné. Isso mudou o curso da guerra de uma maneira impressionante. A partir do momento que nós começamos a usar estas armas antiaéreas, o exército colonial português ficou completamente na defensiva. Depois de março de 1973, o exército português terá feito três ou quarto operações ofensivas, nada mais. Isso mudou o papel dos beligerantes. Nós passamos a ter a capacidade ofensiva que deixaram de ter e passamos de fato a dominar o terreno.

DW África: Como foi a negociação para a obtenção destes mísseis?

MS: Isso eu não posso dizer porque foi [Amílcar] Cabral que nos conseguiu. Ele conseguiu os 2.972 e nós fomos para a União Soviética para treinar. Quando nós chegamos à Bissau, já depois da morte de Cabral, utilizamos os mísseis e creio que com alguma eficiência.

“O 25 de Abril nasceu na Guiné”, diz Manuel dos Santos

DW África: O que significou a ascensão do general António de Spínola aqui na Guiné?

MS: Eu penso que o general Spínola chegou à Guiné com um projeto de fazer uma anti-guerrilha moderna. Isto não era o caso do seu predecessor que utilizou exclusivamente a repressão pura e dura sobre os habitantes das nossas regiões libertadas, tentando contrariar as ações de nossas forças armadas. O general Spínola veio com uma estratégia de anti-guerrilha total. Quer dizer, havia o elemento armado, o elemento de guerra, o elemento político e o elemento social. Ele introduziu todos estes elementos no conflito aqui na Guiné e por isso nos criou algumas dores de cabeça. Nós pensamos que ele foi, de longe, o melhor comandante-chefe português que passou aqui na Guiné. É óbvio que tivemos capacidade de resposta à altura dos desafios que o general Spínola nos apresentou. E quando nós conseguimos os mísseis antiaéreos, o general Spínola, que eu acho que era um homem inteligente, deu-se conta que a solução para o conflito não poderia ser militar, mas negociada.

DW África: Alguns autores, quando abordam o conflito, comparam a resistência da guerrilha ao que os norte-americanos enfrentaram no Vietname. Tem sentido?

MS: [A Guiné] foi a colónia onde a guerra foi mais violenta e mais eficiente por parte dos guerrilheiros nacionalistas. Eu creio que ninguém tem dúvidas disto. A partir do momento que nós conseguimos estas armas antiaéreas, deixando o exército português completamente na defensiva [surgiu uma situação] inimaginável para qualquer exército colonial ou qualquer exército europeu. De facto, nós teríamos sido a ex-colónia cujo combate foi decisivo para que acontecesse o golpe de Estado em Portugal e depois a libertação das coló nias. O golpe de 25 de Abril nasceu aqui.

DW África: Como?

MS: Se você enumerar, todos os militares portugueses que tiveram uma ação preponderante no golpe de Estado passaram por aqui. Otelo Saraiva de Carvalho, Vasco Lourenço, António de Spínola, Salgueiro Maia e tantos outros passaram por aqui na fase final. Foi aqui que eles adquiriram consciência que o exército deles estava a perder uma guerra, o que nenhum exército gosta. Foi aqui que eles aprenderam também que era necessário encontrar uma solução para este conflito, que não fosse a perda da guerra. Aí, surge o 25 de Abril. O 25 de Abril nasceu na Guiné.

Manuel dos Santos (Manecas), Mitglied der PAIGC
Amílcar Cabral (esq.) com Manuel dos Santos (centro) em Boké, agosto de 1971Foto: casacomum.org/Documentos Amílcar Cabral

DW África: Havia o contato desarmado entre os soldados de ambos os lados?

MS: Este contato foi posterior ao 25 de Abril. Foi interessante que, após o 25 de Abril, tanto os nossos soldados como os portugueses fizeram o possível para se encontrarem no terreno. Em maio e junho já estávamos a nos encontrar no terreno. A partir daí se tornava impossível para o colonialismo português continuar com a guerra na Guiné. O general Spínola teve uma tentativa, não sei se de continuar a guerra, mas de arranjar instrumentos de pressão ameaçando com a continuação da guerra. Neste momento, no entanto, houve um manifesto escrito pelos oficiais portugueses na Guiné, assinado por mais de mil oficiais portugueses que se encontravam aqui, a dizer que a guerra havia acabado.

DW África: Alguns autores insinuam que a morte de Amílcar Cabral teria destacado algum tipo de divisão entre cabo-verdianos e guineenses. O senhor concorda?

MS: Onde estão pessoas de origens diferentes pode haver conflitos mais ou menos importantes. Eu não acredito muito na importância deste conflito na morte de Amílcar Cabral. Ele nasceu na Guiné e era filho de pais cabo-verdianos. Eu estive longos anos aqui nas forças armadas, normalmente sendo o único cabo-verdiano em uma unidade, em lugar de comando. Estes problemas surgem nos locais onde começa a disputa pelo poder. Nas forças armadas eu nunca tive o menor problema por ser mestiço e cabo-verdiano.

DW África: O senhor aceita a versão da morte de Amílcar Cabral?

MS: As pessoas que mataram Cabral, que deram o tiro, a gente sabe quem foi. Mas o mandante... aí é que está o problema. Quem poderia aproveitar a morte de Amílcar Cabral? Parece-me óbvio. O PAIGC não poderia aproveitar isto. Os únicos que poderiam tirar algum proveito disso eram os portugueses. Há muitos argumentos para afirmar isto. Os tipos que estavam no grupo que matou Cabral tinham estado presos no Tarrafal e depois foram “virados” pela sua detenção e enviados para Conacri. Eu não tenho dúvida nenhuma que o mandante situa-se nas estruturas do poder colonial. Pode haver cúmplices fora, mas o mandante está ali.

DW África: Há algum confronto que tenha lhe marcado especialmente no comando?

MS: Os últimos de 1973, em Guidadje. Nesta altura, o comandante da frente não estava e eu comandei toda a operação. Envolvia muitos efetivos e eu pedi a coordenação. De fato, saímos vitoriosos deste conflito.

"Manecas" e o poder de fogo da guerrilha guineense

DW África: O que foi decisivo?

MS: A inexistência de aviões e aquilo que era uma das grandes vantagens do PAIGC: tinha soldados com cinco, seis, sete ou oito anos de guerra nas costas. Uma experiência que não se adquire no treino. Nós tínhamos unidades aguerridas e unidades de elite que faziam frente com grande vantagem à tropa colonial. As únicas tropas coloniais que nos enfrentavam de facto no terreno, e mesmo assim não em vantagem, eram os comandos e os fuzileiros.

DW África: De onde vinha o suporte bélico?

MS: Da União Soviética fundamentalmente. Nós estávamos bem equipados com armas modernas de infantaria. Tínhamos o melhor que poderia ser usado naquela altura. Em termos de infantaria, nós estávamos mais bem equipados do que o exército português. Nós só tínhamos armas automáticas Kalashnikov e bazucas RPG-7. Esse era o nosso armamento standard.

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