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Irmãos sírios separados por guerra se reencontram no Brasil

Marina Estarque20 de junho de 2015

Conflito na Síria obrigou milhares de sírios a abandonar seus lares. Entre eles estão os irmãos Khaled e Kamal Daqa, que após anos sem notícias um do outro, se encontraram novamente em São Paulo.

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Khaled (esq.) e Kamal moram em São PauloFoto: Marina Estarque

Os dedos de Khaled Daqa foram quebrados, um por um. A tortura na prisão síria deixou seus pés deformados para sempre, mas não foi capaz de endurecer suas feições. Com os olhos vivos e um sorriso terno, Khaled conta que é fã de feijão e do Corinthians – duas das poucas palavras que aprendeu em português, desde que chegou ao Brasil como refugiado, sete meses atrás.

O sírio, de 39 anos, foi trazido com a família pelo irmão, Kamal, com a ajuda de amigos brasileiros. "Ele tinha dinheiro para a sua passagem. Para os três filhos e a esposa, conseguimos ajuda da ONG brasileira IKMR, que cuida de crianças refugiadas, e dos meus amigos brasileiros. Cada um deu o quanto podia", explica Kamal, que chegou ao país em 2014.

Após anos sem notícia um do outro, os irmãos conseguiram se reencontrar pelo Facebook: Khaled estava com a família em um campo de refugiados na Jordânia.

Os irmãos Daqa estão entre os mais de 1,7 mil sírios reconhecidos como refugiados pelo governo brasileiro desde o início do conflito, em 2011, formando a maior comunidade do tipo na América Latina. Em 2014, o Brasil foi o país da região com o maior número de solicitações de refúgio.

A Síria é hoje a nacionalidade com maior quantidade de refugiados no mundo: 3,88 milhões, segundo relatório da ONU divulgado por ocasião do Dia Mundial do Refugiado, comemorado neste sábado (20/06).

Kamal e Khaled têm um amor quase incondicional pelo Brasil, que permanece inabalável, mesmo após duas tentativas de assalto. "Luto karatê e consegui imobilizar os ladrões", conta, entre risos, Kamal.

Para eles, o povo brasileiro é acolhedor. Eles afirmam nunca ter sofrido preconceito, apesar dos hábitos e tradições culturais tão distintos da sua terra natal.

"No Brasil há uma mistura de culturas. Em São Paulo, há japoneses, árabes, italianos, gente de todos os lugares", diz Kamal. Ele afirma que nem mesmo sua esposa, que anda com hijab (véu islâmico feminino) teve qualquer experiência negativa. "Pelo contrário, como há muitos descendentes de árabes aqui, muitos a cumprimentam na rua".

A identificação com o Brasil foi tão rápida que Kamal e seus filhos – a menina Alaa, de 10 anos, e os meninos Layan e Alhasan, de quatro e um ano, respectivamente – sofreram com a derrota na Copa do Mundo. "Foi horrível, ficamos muito tristes. O mais novo, que nasceu aqui e é brasileiro, estava todo vestido de verde e amarelo", lembra.

Adaptação

A família de Kamal parece adaptada ao novo lar. Mas, quando chegou ao Brasil, em 2014, Kamal demorou sete meses para achar um emprego. Formado em ciência da computação nos Emirados Árabes, trabalhava na Síria como programador, com um salário de 4 mil dólares, além de ter três invenções patenteadas.

"Sei falar inglês, árabe e, agora, português. Mas aqui não ganho nem um quarto do que recebia na Síria", lamenta. Ele afirma que, por não ter conseguido validar seu diploma no Brasil, seu salário é muito inferior ao dos seus colegas de trabalho. "Quero continuar meus estudos, mas, para isso, preciso resolver essa questão burocrática", diz.

Atualmente, afirma Kamal, seus rendimentos dão apenas para pagar o aluguel de um apartamento próximo da Praça da Sé e a escola dos filhos – de ensino particular, onde as aulas são em português e árabe. Na Síria, a família tinha um padrão de vida alto, com carro e casa própria – tudo interrompido pela guerra.

Khaled também está empregado, mas o dinheiro não é suficiente para sustentar toda a família. Por isso, o filho mais velho, Mustafá, de 15 anos, trabalha 12 horas por dia ilegalmente em um restaurante. A outra filha, Hanan, de 12 anos, frequenta a escola pública. Khaled tem ainda outra menina, de apenas seis meses de idade.

Häuserruinen nach Bombardement in Aleppo Syrien
Conflito na Síria já deixou milhares de vítimasFoto: Getty Images/AFP/Z. Al-Rifa

Apesar da vida dura no novo país, Kamal e Khaled têm apenas uma reclamação. "Nem sempre os empregadores entendem os hábitos da nossa religião. Nós rezamos na sexta-feira, não aos domingos, como os cristãos. Pedimos para sair do trabalho por uma hora para orar nesse dia, mas não nos permitem", dizem.

Fuga da Síria

Kamal decidiu deixar seu país no dia em que a esposa perdeu seu bebê. Grávida, Sana olhava pela janela quando o exército sírio passou pela rua. Quando perceberam que alguém os observava, voltaram suas armas contra Sana, que correu para dentro do apartamento.

Com o nervosismo, passou a sentir fortes dores. Poucos dias depois, teve um sangramento intenso durante a madrugada. "Morávamos do lado de um hospital, mas não podíamos levá-la ali, porque era uma região de conflito. Ninguém sai de casa em Damasco após o pôr do sol. Só se escutam tiros e explosões a noite toda", conta.

Kamal pegou o carro e levou a esposa até um hospital afastado da cidade. "Demoramos muito para chegar. O tempo todo ela se esvaindo em sangue, dizendo que eu deveria tomar conta das crianças. Ela tinha certeza que ia morrer", lembra.

Para Kamal, aquela foi a gota d'água. Desde 2011, pelos menos três dos seus familiares já haviam sido mortos nas prisões sírias e vários outros estavam desaparecidos. Nos bloqueios – Kamal afirma que há pontos de controle a cada cinco quilômetros em Damasco – a polícia começava a cercear a sua movimentação devido ao seu sobrenome.

"Eu não tinha feito nada, mas o nome da minha família era suspeito", afirma. Kamal comprou passagens de avião para o Egito, mas foi impedido de deixar o país. Acabou subornando um policial na fronteira com o Líbano, para conseguir passar. Menos de 24 horas depois de sair da Síria, sua casa foi bombardeada e ficou totalmente destruída.

Estado Islâmico

A fuga do irmão foi ainda mais complicada. Khaled tinha sido preso e torturado, com pancadas e choques elétricos. "Foi o pior ano da minha vida", diz. Ele foi acusado de levar sírios para a Turquia para obter tratamento médico.

"As pessoas na Síria têm medo de ir aos hospitais, porque sabem que o exército executa pessoas dentro dos centros médicos, por considerá-las traidoras. Então eu levava os feridos em meu carro até outro país", conta Khaled. "Eu fui preso por ajudar essas pessoas", lembra.

Ao sair da prisão, Khaled retomou a atividade e foi chamado para um "café" com os agentes do governo. "Isso significava que iam matá-lo", explica Kamal, com um riso nervoso. Ao mesmo tempo, Khaled foi contatado pelo Estado Islâmico.

"Queriam que eu me juntasse aos jihadistas, mas não aceitei. Não gosto de sangue, não quero matar pessoas", afirma. Ele explica que não concorda com o nome Estado Islâmico. "Não o chamamos assim, porque achamos que não são muçulmanos. Eles estão fazendo coisas que não estão escritas na nossa religião."

Ameaçado de morte por ambas as partes, Khaled fugiu com a família, através de uma rota alternativa para a Jordânia. O trajeto era muito perigoso, devido à quantidade de postos de controle – evitados com a ajuda de um amigo, que lhe transmitia as informações sobre a movimentação da polícia.

No trajeto final, a família teve que caminhar 16 horas por vales e montanhas até cruzar a fronteira. Das malas, sobrou apenas o laptop.

A chegada no Brasil, após um período difícil no campo de refugiados na Jordânia, foi um alívio. "Agora dormimos tranquilos", afirma Khaled. Apesar de felizes com o reencontro, os irmãos se lembram da mãe, que ficou sozinha nos Emirados Árabes após a morte recente do pai. Kamal agora tenta trazê-la para São Paulo. "Queremos estar juntos como uma família novamente."