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Índios venezuelanos dormem nas ruas de RR e elogiam Chávez

Marina Estarque enviada especial a Roraima
12 de dezembro de 2016

Indígenas fugiram do desemprego e da fome na Venezuela e vivem em terrenos baldios, rodoviárias e feiras públicas no norte do Brasil.

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Estrella e Edgar, índios Warao, elogiam os programas sociais do governo do ex-líder venezuelano Hugo ChávezFoto: DW/K. Andrade

Ficou para trás, a mais de 900 quilômetros de distância, a "casa digna" da índia venezuelana Maria Rosangela, de 45 anos. Lá ela tinha água, luz, encanamento e paredes de alvenaria. "Tinha tudo". Agora a senhora, que aparenta bem mais do que a idade, dorme no chão de uma feira pública em Boa Vista, Roraima.

Centenas de índios venezuelanos, como Maria, cruzaram a fronteira para o Brasil desde 2015, fugindo do desemprego e da fome. Instalaram-se provisoriamente em terrenos baldios, rodoviárias, debaixo de marquises e em feiras públicas na capital do estado e em Pacaraima, na divisa com a Venezuela. Segundo o Ministério da Justiça, mais de 77 mil venezuelanos entraram no Brasil pela cidade fronteiriça entre janeiro de 2015 e setembro de 2016.

Quando Maria diz "casa digna", refere-se a um programa habitacional do governo, o Misión Vivienda. A expressão é recorrente entre os indígenas venezuelanos. "Chávez ajudou muito os índios", diz ela. A popularidade do ex-presidente Hugo Chávez, no entanto, não se estende ao sucessor Nicolás Maduro, associado à crise. Foi no governo dele, ela explica, que precisou vir ao Brasil atrás de comida.

Maria, como muitos indígenas, veio a Roraima para juntar um pouco de dinheiro, comprar alimentos e levar aos seus parentes na Venezuela. Ela já está satisfeita: comprou dois fardos de arroz e farinha para seus quatro filhos. "Não comíamos farinha há um ano".

Com um vestido longo colorido, a índia da etnia Warao passa o dia vendendo artesanato – bolsas e acessórios de palha trançada – nos arredores da Feira do Passarão. Há também muitas mulheres pedindo esmola, com crianças no colo.

No fim do dia, os índios penduram suas redes, estendem papelões e se preparam para dormir. As mulheres se banham de roupa, com baldes de água, e lavam as crianças dentro das pias, antes destinadas a limpar os alimentos vendidos na feira. Ainda que as índias tentem jogar areia no chão, para cobrir os dejetos, e varrer alguns trechos, o mau cheiro no local é muito forte.

Sem abrigo

Segundo o administrador da feira, José Maria Nascimento, os cerca de 130 comerciantes, que pagam entre 10 reais e 20 reais por semana de taxa de manutenção do local, estão muito descontentes.

"Os índios chegaram há um mês e meio. No início eram 20, agora são cerca de 300. Aqui antes era limpo, agora não tem higiene", afirma. De acordo com ele, que é funcionário público, a feira é do governo do Estado. "Tem tanto prédio desocupado e não arrumam uma solução", reclama.   

Se depender do governo do estado, os índios devem continuar por lá. A administração afirma que abriu um centro móvel de referência ao imigrante, com atendimento médico e alimentação, mas não pretende oferecer abrigo por falta de recursos.

Em Pacaraima, a situação é similar. Nos dias em que a reportagem passou na cidade, pelo menos 60 indígenas dormiam nos arredores de um terreno baldio, ao lado da rodoviária, enquanto outras dezenas estão instaladas em outros pontos.

Na área, onde crianças e adultos andam descalços, há uma enorme quantidade de lixo: garrafas plásticas, latas de tinta e de sardinha, fezes de animais, papelões, trapos e até calcinhas jogadas. Ali também é o local usado pelos índios para cozinhar suas refeições. Montam pequenas fogueiras no chão, com tijolos e lenha, e frigideiras pretas são colocadas no fogo. Panelas usadas ficam jogadas na terra, com restos de comida e água da chuva.

Ali também as crianças passam o dia brincando – todas têm a pele manchada de sujeira e marcada com feridas. Alguns moradores passam ao lado e comentam: "é cruel...". Outros passam para entregar doações.

Estrella, de 51 anos, é uma das índias Warao que vive ao redor do terreno. "Como vem o Natal, estamos pedindo esmola para levar alguma comida e roupa. Aqui há pessoas boas que ajudam. Graças a Deus e à Virgem aqui comemos três vezes ao dia", diz ela, que chegou a Pacaraima há quatro dias, com o marido e dois filhos.

Estrella tem uma casa de palafita, na beira de um rio no município de Antonio Díaz, na Venezuela. A terra é dela, mas a maior parte é alagada, então há pouco espaço para plantar. Ali produz milho, arroz e mandioca, mas diz que a comida não dá para todos. Também reclama da falta de ferramentas para a agricultura.

Edgar Ortega, de 31 anos, veio no mesmo grupo de Estrella. Sua esposa está grávida e ficou com os quatros filhos pequenos lá em Antonio Díaz – o maior tem 11 anos. "Ainda não consegui comprar nada para levar e não tenho o dinheiro para voltar. Estou preocupado. Lá não tem telefone, nem sinal, então não falo com a minha esposa desde que vim para cá", conta.

Edgar e Estrella também elogiam Chávez e citam vários programas do governo. Eles não chegaram a ganhar uma casa, mas se beneficiaram de bolsas de educação e alfabetização. "No governo do Chávez havia trabalho e comida. Havia Misión Robinson, Misión Ribas, muitas missões. Agora já não há mais. Tem até um ditado: 'con Maduro, se puso todo duro [com o Maduro ficou tudo difícil]'", diz.

Brasilien 'Especial Venezuela – special report'
Wilfredo Sambrano, de 22 anos, trabalha descarregando caminhões em ParacaimaFoto: DW/K. Andrade

Política pública

Segundo o arqueólogo e etno-historiador venezuelano Rafael Gassón, estudioso do povo Warao, o governo Chávez de fato se esforçou para incluir os indígenas em políticas públicas e incentivar a sua participação política. No entanto, a queda dos preços do petróleo, bem como a crise política e econômica, estancaram as ajudas governamentais, afirma Gassón, que faz pós-doutorado em antropologia na Universidade dos Andes, na Colômbia.

Ele diz que não houve, na atualidade, uma política séria para solucionar as dificuldades enfrentadas pelos Warao, que somam cerca de 35 mil índios. "A situação deles é de desespero, como a de muitos indígenas venezuelanos", afirma.

Segundo ele, a região dos Warao, principalmente o estado Delta Amacuro, sofreu com desastres ambientais, como a construção da barreira no rio Caño Mánamo, o desmatamento e a contaminação dos rios, que impediram as atividades tradicionais de subsistência dos índios. Ele cita também grandes epidemias de cólera e o aumento da criminalidade no estado, por onde passa uma das principais rotas do narcotráfico para Trinidade e Tobago e o Caribe.

Sem saída, os Warao migraram dentro do seu próprio território e para outros estados, chegando a grandes cidades da Venezuela. "Muitos imaginam a região do Delta como uma paisagem intocada, primitiva. Mas é o contrário. Há áreas que parecem ter chegado ao limite da sua capacidade de carga e população".

Preconceito

Gassón afirma também que os Warao sofrem muito preconceito, similar ao que ocorre com os povos ciganos. Autoridades em Roraima, por exemplo, têm de fato um discurso negativo em relação aos indígenas venezuelanos.

"Eles estão sob a tutela do Estado há anos e estão acostumados a pedir. Eles não querem trabalhar. Sobre os indígenas não temos como solucionar", disse a secretaria municipal de assistência social de Pacaraima, Socorro Santos.

Segundo Gassón, os Warao "são capazes de trabalhar muito duro, assim como qualquer povo". O índio Edgar, por exemplo, carrega mercadorias em Pacaraima, assim como Wilfredo Sambrano, de 22 anos.

O jovem está há duas semanas na cidade e ganhou 180 reais descarregando caminhões. Lá na Venezuela, Wilfredo tinha sua "casa digna", recebida do governo há três anos. Em Pacaraima, Wilfredo dorme com a esposa e a filha, de dois anos, em papelões, debaixo da marquise de um supermercado. A mãe abana o rosto da menina, cercado por moscas insistentes.

Para quem havia recebido uma casa digna há pouco tempo, é difícil se acostumar a viver na rua. "É muito duro e faz frio", conta ele. A esposa tenta embalar a menina, mas ela custa a dormir. São muitas moscas.