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Um novo Kafka

DW (pl/av)3 de julho de 2008

O autor de língua alemã nascido em Praga é um dos mais importantes do século 20. Os 125 anos de seu nascimento são boa oportunidade para rever a imagem de artista inseguro e neurótico que a posteridade retém de Kafka.

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Franz Kafka nasceu em 3 de julho de 1883Foto: AP

Uma bela manhã, Gregor Samsa acorda para descobrir que se transformou num monstruoso inseto. Ou o caso de Josef K., de uma hora para outra tornado protagonista de um corrosivo processo jurídico, cuja origem e razão permanecem enigmáticas. Com imagens como estas, um autor de língua alemã, nascido em Praga e de origem judaica, não só captou como anteviu alguns dos piores pesadelos e paranóias do mundo moderno.

Sonhador taciturno, alheio ao mundo, inextricavelmente envolvido em conflitos familiares: é assim que a posteridade costuma ver Franz Kafka. As fotos mostram um homem jovem, de faces cavadas e olhar melancólico, e a famosa carta de 1919 prova como era oprimido pela figura paterna.

Porém não é justo reduzir a vida e a obra do escritor a esse estereótipo. Celebrando os 125 anos de nascimento de Kafka – a 3 de julho de 1883, em Praga –, o autor Reiner Stach lançou uma nova biografia: Die Jahre der Erkenntnis (Os anos do conhecimento) cobre o período de 1916 até sua morte, em 1924.

Entre a arte e a vida

Produto de pesquisa meticulosa, o abrangente volume oferece uma imagem diferenciada de Kafka. Stach demonstra que, longe de ser mero pano de fundo para o sensível artista, os acontecimentos políticos que presenciou o envolveram diretamente, em especial a Primeira Guerra Mundial.

Franz Kafka Arbeitsstätte Wenzelsplatz Prag
A seguradora onde Kafka trabalhava, na Praça Wenzel, em PragaFoto: picture-alliance/ dpa

Um exemplo é ele ter sido pressionado a comprar títulos de empréstimo para a guerra. Deste modo, ficou praticamente privado de suas economias, com as quais pretendia fundar uma existência de escritor, após demitir-se do emprego de jurista de uma seguradora.

Obedecendo ao desejo paterno, ele entrara em 1908 para uma companhia especializada em seguros de acidentes de trabalho. Segundo seu biógrafo, Kafka era um advogado dedicado e bem-sucedido, um negociador temido pelo patronato, que vencia quase todas as causas assumidas.

Seu sonho, contudo, era sair de Praga, libertar-se das garras da família e ir viver como escritor em Berlim, ao lado da noiva, Felice Bauer.

Dupla existência

Porém a guerra alteraria todos os seus planos. A liberdade de ir e vir foi cerceada, e Franz Kafka precisava trabalhar duas vezes mais do que antes, já que grande parte de seus colegas de escritório se encontrava no fronte. A rotina usual de retornar à casa ao meio-dia e escrever tornou-se impraticável.

Agora a firma exigia sua presença até de noite e aos sábados. Kafka tentou simplesmente ignorar o fato e continuar produzindo, porém as conseqüências da falta de sono foram graves. O principal motivo por que ele não conseguiu concluir O processo é que a vida dupla de funcionário e literato o esgotara inteiramente.

Ainda assim, dedicou-se a redigir contos breves. No inverno de fome de 1916–1917 nasceram textos grandiosos como Um médico de aldeia, A ponte e Na galeria. Justamente nas situações de crise, quando acreditava haver batido no fundo do poço, Kafka revelava reservas insuspeitadas.

Excêntrico com moderação

E, no entanto, quase nunca estava satisfeito: perfeccionista extremo, só permitiu a publicação daquilo que preenchesse plenamente suas exigências. Entre a imagem romântica do artista e as enormes pressões do século 20 que despontava, Kafka era uma pessoa difícil, crivada de neuroses.

O que não significa que fosse o ser profundamente perturbado que querem certos intérpretes, ressalva Stach. "Ele tinha hábitos muito rígidos, porém reconhecia o fato e fazia piada a respeito. Não era nada grave, que impossibilitasse a convivência, embora ele próprio haja afirmado o contrário, por vezes."

Da mesma forma, no que se refere às mulheres, Franz Kafka jamais foi um monge. Porém temia por seu equilíbrio interno, ficava dividido entre proximidade e distância. Somente Milena Jesenká estava à sua altura e – se dispusesse de saúde – talvez houvesse lutado por ela. Na prática, também esse amor fracassou.

Siga lendo: "O alemão é minha língua materna, porém o tcheco me fala ao coração".

Kafka, alemão?

Tcheco, tcheco-judeu ou alemão? Fato é que toda a obra conhecida de Kafka foi escrita no "idioma de Goethe". Em Franz Kafkas Sprachen: "... in einem Stockwerk des innern babylonischen Turms" (As línguas de Franz Kafka: "... num piso da babilônica torre interior..."), o filólogo Marek Nekula aborda a questão da identidade cultural do autor de A colônia penal.

Este nasceu na multinacional monarquia austro-húngara, numa época em que 7% da população de Praga era germanófona (Pragerdeutsch) e vivia num "isolamento insular", nas palavras do próprio Kafka. O Estado da Tchecoslováquia só seria fundado após a Primeira Guerra Mundial.

As influências domésticas foram múltiplas. O pai, Herman Kafka, provavelmente falava iídiche na aldeia natal, na Boêmia, aprendeu alemão na escola primária e adotou o tcheco em Praga, a fim de comunicar-se com os empregados. Embora insistisse em manter o alemão com os familiares imediatos, num censo de 1910 indicou o tcheco como seu idioma quotidiano. Quanto à mãe, Julie Loewy, dominava o alemão coloquial e nunca aprendeu corretamente o tcheco.

Identidade múltipla

Franz Kafka mit erster Verlobten
Ao lado da noiva Felice Bauer, em 1917Foto: picture-alliance/ dpa

De uma carta de Franz consta a seguinte definição: "O alemão é minha língua materna, porém o tcheco me fala ao coração". Seu domínio oral do tcheco – tanto coloquial quanto formal – era notável, assim como seus conhecimentos da literatura nacional. Fato que torna ainda mais curiosa a relutância em escrever nesta língua, mesmo sobre assuntos relativos ao trabalho na seguradora.

Os esforços de autoridades tchecoslovacas para, na década de 60, redefinir Kafka como expoente da língua nacional foram, sobretudo, ditados por ilusões patrióticas, não resistindo à evidência lingüística. Por outro lado, Nekula não acredita que a consciênncia que tinhha Kafka da primazia do alemão em sua vida implicasse em qualquer espécie de autoidentificação nacional ("Jamais vivi entre o povo germânico", escreveria).

O filólogo alerta ainda contra a tentação de cobrir as lacunas no perfil lingüístico-cultural com uma pretensa identidade judaica. O próprio Kafka foi sempre modesto no tocante a seus conhecimentos das tradições judaicas ou a seu lugar na comunidade. Apenas em 1911 se interessa pelo iídiche, graças ao contato com uma trupe itinerante de teatro, seis anos mais tarde inicia estudos de hebraico.

Ao final da análise de Marek Nekula paira a imagem de um Kafka plurilíngüe e multicultural. Ou, nas palavras do germanista Peter Demetz, "um dos primeiros cidadãos de nosso mundo multilíngüe, no qual as torres babilônicas [...] crescem como cogumelos após a chuva". E no qual "os chauvinistas ficarão totalmente confusos", como previu Max Brod, amigo de longa data de Kafka.

Fonte de insights

Franz Kafka faleceu em 3 de junho de 1924, de insuficiência cardíaca, após ter a saúde minada durante sete anos por uma dolorosa tuberculose da laringe. Pouco antes pedira a Max Brod para destruir todo o seu legado literário. Porém o fiel amigo recusou este desejo terminal, em benefício da posteridade.

Brod foi o primeiro a se ocupar da fascinante obra kafkiana, a qual continua longe de ser plenamente explorada. E permanece ainda hoje fonte inesgotável de novas descobertas e insights. Como descreve o biógrafo Reiner Stach: "Em sua cabeça corria sem parar um filme. Provavelmente como o que se vivencia sob o efeito de drogas, ou durante a puberdade".