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Pé na praia: Um ladrão trabalhador

Thomas Fischermann
5 de abril de 2017

João Batista era um ladrão de joalheria que se tornou um homem honesto na selva. Quer dizer, quase um homem honesto. Sua pátria? Um pedaço de floresta, que ele próprio ajudou a transformar em um inferno ecológico.

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DW Brasilianisch Kolumne - Autor Thomas Fischermann
Foto: Dario de Dominicis

Quando se viaja como correspondente pelo Brasil, encontra-se muita gente fora do comum. Entre os meus favoritos, até hoje, está João Batista L. – um ladrão de joalheria que se tornou um homem honesto na selva. Quer dizer, quase um homem honesto. Quando o conheci, João Batista trabalhava no comércio ilegal de ouro. Durante o dia, revirava um barranco de um rio do Amazonas com uma draga, onde o ouro era lavado da lama. À noite, pagava suas contas nos bares e bordéis com o lucro obtido da lavagem sem declarar impostos. Mas ele me contou a sua história. Tenho que admitir: em comparação ao que era antes, o homem se recuperou. 

Encontrei João Batista numa cidade da BR-230, na Transamazônica, para onde iam os garimpeiros. Quando chegava lá, João Batista primeiro se embebedava, depois fumava dois baseados e então dormia, até passar o torpor, em um quarto de motel. Isso significava que sua busca por ouro tinha sido bem sucedida: podia se dar ao luxo de se esbaldar. Então se instalava no centro do lugarejo, e era difícil de ignorá-lo. Um homem negro, forte e corpulento, com o semblante de traços angulosos e muitas rugas de expressão. João Batista, relaxado, apoiava-se em uma pickup estacionada, a barriga de cerveja era proeminente, e seus pés gigantescos estavam metidos só até a metade de uns tênis brancos sem cadarço. Com frequência dizia ofensas aos outros garimpeiros, sorria, e eles gritavam algo incompreensível em resposta.  

Convidei João Batista para tomar uns uísques e fiquei conhecendo a sua história. Ele me contou que teve que ocultá-la por muito tempo, mas agora seus maiores pecados já haviam prescrevido. "As pessoas sempre acreditam que se deve assaltar uma joalheria chique numa avenida importante", disse, aplaudindo alegremente. "Mas é muito mais fácil saquear as oficinas!"

O maior golpe de João Batista foi o roubo numa oficina de joalherias em Minas Gerais. Isso se deu há mais de trinta anos. Na época do roubo os proventos somavam uma quantia de três dígitos de milhões – pelo menos foi o que o ladrão me contou – e seu bando poderia ter vivido uma vida de príncipe com este dinheiro. Poderia! Mas o chefe, um amigo de João Batista, pagou uma prostituta com uma joia do assalto. "Na época, o chefe de polícia visitava a mesma mulher", disse o ladrão. E foi assim que aconteceu, que tive que passar "alguns belos anos na cadeia". 

Fugiu após alguns anos, para um antro de garimpeiros no estado de Mato Grosso. Adotou um nome falso, ou melhor, não precisou sequer dar o seu nome. Por três décadas, viveu de garimpo em garimpo. João Batista falava com fascinação desta época. Contou que nunca passou fome entre os garimpeiros. Ninguém jamais fez um comentário sequer sobre a cor de sua pele. Sim, atirei em outros garimpeiros, "eu creio", mas só para defesa. "Aprendi com os garimpeiros o que significa ganhar dinheiro – e trabalhar", me disse. "No garimpo, quem rouba algo é executado imediatamente". Lá, João Batista acreditava ter se libertado da vida à margem da sociedade. 

Nos antros de garimpos ilegais no Amazonas é assim. Quem fica neles não precisa dar seu nome verdadeiro. "Eles querem trabalhar e ganhar dinheiro, nós tornamos isso possível e pronto", o dono de um pouso no meio da mata uma vez me explicou.

Os garimpeiros vêm e vão quando querem. Podem carregar armas, beber cachaça, fumar maconha, ir ao bordel e muito mais. Para muitos garimpeiros o objetivo é essa vida desregrada. Dizem que essa é a verdadeira liberdade. 

Mas, no caso de João Batista, ficou claro para mim que a vida no garimpo era a forma de vida mais burguesa que ele já tinha visto. Quando os garimpeiros trabalham, explicou, trabalham duro. A vida nos barracões dos trabalhadores, onde ficam durante a semana, não tem nada a ver com os excessos dos fins de semana. Lá as drogas e o álcool estão proibidos, levanta-se cedo e deita-se tarde. O trabalho físico é duro, necessita-se de força e persistência, tudo que é químico sobrecarrega o corpo. 

"Quase ninguém consegue juntar dinheiro para mais tarde na vida", disse o veterano do garimpo João Batista. "A ganância por ouro acaba te contagiando." Explicou que os homens sempre querem revirar mais barrancos, sonham em encontrar uma quantidade de ouro gigante, gastam os ganhos de seu trabalho em diversões caras na cidade. Suas mulheres que ficaram em cidades distantes casam-se novamente, os filhos não querem mais saber de seus pais.

No fim o pó de ouro, no valor de centenas de milhares de reais, lhes escapa pelos dedos, e morrem pobres, castigados pelo álcool, malária e doenças venéreas. Sua pátria? Um pedaço de floresta, que eles próprios transformaram em um inferno ecológico. 

"A vida é feita de momentos", diz João Batista L.. Tinha um olhar sábio enquanto suas mãos grandes arrancavam a tampa de uma lata de cerveja. "Morrerei rico de momentos. Só não tenho mais mesmo é dinheiro."

Thomas Fischermann é correspondente para o jornal alemão Die Zeit na América do Sul. Em sua coluna Pé na Praia, faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos – no Rio de Janeiro e durante suas viagens. Pode-se segui-lo no Twitter e Instagram: @strandreporter.