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Pé na Praia: A família vigiada

Thomas Fischermann
25 de outubro de 2017

O que um aplicativo para celular que informa os pais onde os filhos estão pode dizer sobre as diferenças culturais entre uma família alemã e uma brasileira?

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DW Brasilianisch Kolumne - Autor Thomas Fischermann
Foto: Dario de Dominicis

Estou viajando pela Alemanha e, em pouco tempo, já me deparei com as diferenças culturais entre brasileiros e alemães. Não me refiro ao comportamento peculiar que adquiri no Brasil: de vez em quando, ensaio um sorriso para as pessoas na rua, no metrô ou na padaria, ou penso em abraçá-los calorosamente. Se não prestar atenção, em breve vão me denunciar à polícia como pervertido, pois na Alemanha as pessoas não sorriem muito e quase não se tocam.

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Mas o problema cultural que vou tratar aqui surgiu durante uma conversa com Hauke Windmüller, de Hamburgo. O jovem é empresário, fundador de um startup denominado "Familonet”, que conseguiu captar milhões em investimentos. Mas Hauke Windmüller tem o mesmo problema que eu: transitar entre as culturas alemã e brasileira.

A firma de Hauke Windmüller, Familonet, inventou um aplicativo que pode ser baixado de graça. Deve ser instalado nos celulares de crianças e de outros membros da família. Assim os pais podem saber onde os filhos estão. Mas, na verdade, este tipo de vigilância é considerada polêmica na Alemanha. Os alemães amam sua liberdade, sua privacidade e dificilmente toleram formas de vigilância, quer seja ela através da polícia, de aplicativos de internet ou de seus próprios pais. Esta é uma característica nacional.

Hauke Windmüller fez o Familonet especialmente para o mercado alemão. As crianças não são vigiadas o tempo todo pelo aplicativo. Os pais não podem ver sempre onde estão os seus filhotes. Eles simplesmente recebem uma mensagem avisando sobre a chegada a um lugar previsto: "Frida chegou à escola”, "Fritz acabou de sair do campo de futebol”, e assim por diante. Entre uma coisa e outra os pais recebem informações sobre localização apenas se a criança quiser. Então, nos intervalos pode acontecer uma escapada para fumar um cigarro ou para dar uns abraços no namorado.

"Pensamos muito sobre como faríamos para as crianças também se manterem motivadas”, explicou o fundador do startup. "Senão elas podem simplesmente desinstalar o Familonet! As famílias alemãs fazem acordos entre si: se você instalar o Familonet, vai ganhar um celular novo. Ou: se você instalar Familonet, pode chegar em casa duas horas mais tarde no fim de semana.”

O problema é que, nesse meio tempo, já se pode instalar o Familonet no mundo todo, e dos quase dois milhões de usuários até agora 350 mil são brasileiros. No início, Hauke Windmüller achou que seria suficiente traduzir o aplicativo e os textos de propaganda para o português. "Mas foi aí que começaram os problemas”, disse.

Windmüller empregou uma assistente brasileira em Hamburgo, uma jornalista e tradutora chamada Manoella Barbosa, que informou o empresário sobre os abismos culturais. "Algumas coisas são simples, mas importantes”, disse Manoella, "por exemplo a idade dos pais. Na Alemanha as pessoas têm filho muito mais tarde! Temos que adequar isso, para não parecer estranho no Brasil.” Além disso Manoella alertou seus chefes alemães para o fato de sempre ter uma babá no contexto. Uma família brasileira de classe média sem babá? Seria muito suspeito.

Mas a questão mais difícil foi o tema central no Familonet: a proteção de dados. Nada disso teria muito valor no Brasil. O slogan de propaganda não funcionou do outro lado do Oceano Atlântico de jeito nenhum: "Quero saber onde meu filho está, mas sem controlar o tempo todo”, dizia. No Brasil a frase teve que ser diferente: "Não preciso me preocupar com meus filhos. Porque sempre sei onde eles estão!”

Na Alemanha os fundadores do startup chegaram até a ter dificuldades em encontrar uma família interessada em ser fotografada para o anúncio. "Os alemães são muito cuidadosos com isso”, contou Hauke Windmüller. "Eles usam Familonet, mas não querem que ninguém saiba. Não querem ser acusados de controlar seus filhos por outros pais”. No Brasil foi diferente. As pessoas mandavam seus nomes, os nomes de seus filhos e muitas fotos para a equipe do Familonet – com sorrisos largos e abertamente, pelo Facebook. Queriam aparecer no anúncio!

No final, eu disse para Hauke Windmüller que deveríamos repetir a conversa. Desta vez com a Manoella Barbosa também, a assistente brasileira. E isso ajudou muito a entender as coisas. "Proteção de dados não é um tema muito importante no Brasil”, Manoella disse estar convencida disso, e mostrou mensagens que a firma recebeu de usuários de sua terra natal. "Uso tbm com a minha esposa muito bem”, escreveu um fan do Familonet. "Uso com frequência pra localizar minha família qdo estão em trânsito”, dizia outra mensagem. "Só não pode fazer coisas erradas, senão...” um usuário deixou o pensamento sem terminar.

Perguntei a Manoella Barbosa o que ela pensa disso – como brasileira que vive na Alemanha, mãe de uma menina pré-adolescente. "O aplicativo não é para brincadeiras”, disse. "É uma questão de você acabar morto na rua ou voltar para casa!” E como ela faz com a filha? Como a motiva a usar Familonet? "Motivar? Muito simples”, respondeu Manoella. "Sou uma mãe brasileira. Se ela desinstalar, aí o tempo fecha lá em casa!”

Thomas Fischermann é correspondente para o jornal alemão die ZEIT na América do Sul. Em sua coluna „Pé na Praia“ faz relatos sobre encontros, acontecimentos e mal-entendidos  no Rio de Janeiro e durante suas viagens. Pode-se segui-lo no Twitter e Instagram: @strandreporter.