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Pesquisadora paulistana fala sobre viajantes alemães no Brasil

Simone de Mello18 de junho de 2002

Em entrevista à DW-World, a historiadora Karen Lisboa comenta a contribuição da literatura de viagem dos autores de língua alemã sobre o Brasil.

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Stefan Zweig é um dos escritores cuja obra sobre o Brasil foi estudada por nossa entrevistadaFoto: DHM

Após ter investigado a concepção de natureza e civilização nos relatos de viagem de Carl von Martius e Johann von Spix (A nova Atlântida de Spix e Martius. Natureza e Civilização na Viagem pelo Brasil 1817-1820. São Paulo, Hucitec/Fapesp, 1997), Karen Lisboa dedica-se atualmente à literatura de viagem de autores do fim do século 19 até a metade do século 20, como o judeu austríaco Stefan Zweig, exilado em Petrópolis, os escritores expressionistas Paul Zech e Kasimir Edschmid, o autor de romances policiais Norbert Jacques, além de outros autores acadêmicos.

DW-World

Quais as mudanças que podem se observar na abordagem dos viajantes do século 19 para o século 20?

LISBOA

– Tanto os autores do século 19 como os das décadas de 20 e 30 observam certas características, certos estereótipos, como – por exemplo – o de que os brasileiros são preguiçosos, indolentes. Enquanto no século 19 isso é um fator de crítica, um traço negativo, algo que constrói a imagem de um brasileiro de certa forma debilitado, autores posteriores (como Norbert Jacques, por exemplo) vêem isso como uma postura de resistência: o brasileiro quer ser assim para se diferenciar do europeu.

Para Wolfgang Hoffmann-Harnisch, autor de Brasil, Retrato de um Reinado Tropical (1938), por sua vez, a lentidão ou a falta de pressa é vista como uma característica que confere mais humanidade ao brasileiro. A postura dos autores da década de 30 tem indícios de uma crítica ao imperialismo e ao capitalismo dos europeus. Alguns autores do século 20 também enxergam que a sociedade brasileira está criando uma cultura própria, autóctone, que mistura elementos da cultura indígena, negra e branca.

Até que ponto os viajantes da primeira metade do século 20 notam o lado mais cosmopolita da cultura brasileira, o lado que dialoga mais diretamente com a Europa, como a Semana de Arte Moderna, de 1922, por exemplo?

A grande decepção é que eles não registram isso. O único autor que tenta abordar mais a história cultural do Brasil, apesar de muitos erros, é Hoffmann-Harnisch: ele chega a mencionar o Modernismo, mas não interage. Outros autores de projeção, como Norbert Jacques e Kasimir Edschmid, não procuram nem conhecer. Uma das dificuldades é a barreira de língua. Neste sentido, acho que eles têm uma postura bem européia, por não procurar entrar em contato com o que está sendo produzido culturalmente no Brasil.

Eu diria que, desde Hans Staden até o documentário de Werner Herzog sobre a filmagem de "Fitzcarraldo" no Amazonas, os viajantes alemães descrevem o Brasil com base numa dualidade entre o incontrolável, representado pela natureza e pelas idiossincrasias da cultura brasileira, e, por outro lado, o controle, manifestado num impulso civilizador ou na crítica da civilização. Você reconhece algo de libertário nos projetos civilizadores dos viajantes do século 20?

Um tema recorrente nos autores do século 19 e da primeira metade do século 20 é que existe mais "liberdade" no Brasil. Para Moritz Lamberg, por exemplo, esta falta de controle sobre o indivíduo, a reduzida interferência do Estado sobre a vida das pessoas, a confusão de esfera pública e privada que caracteriza a sociedade brasileira dão uma sensação de maior liberdade ao indivíduo e possibilidade de construir alguma coisa. Hoffmann-Harnisch, por sua vez, interpreta a falta de uma sociedade civil estruturada como um sinal de maior liberdade. Existe um grande fascínio pelo fato de o indivíduo não se sentir tolhido em seus ímpetos.

O que levou os viajantes do século 20 a reconhecerem no Brasil uma "democracia racial", apesar da visível desigualdade social e discriminação racial?

No século 19, já era evidente para um europeu que chegasse ao Brasil que havia mistura de raças, o que levou o Brasil a ser considerado um laboratório ideal para se observar o que significava a mistura de etnias. Isso ocorreu no contexto das teorias raciais do século 19, o momento em que mais se discutiu cientificamente o que significa misturar "cores" diferentes, o período em que surgiram os maiores disparates de organizar a sociedade conforme uma hierarquia racial e atribuir a cada raça seus valores, sendo que a branca era evidentemente a raça de valores superiores.

No século 20, quando o discurso racista foi transformado em prática, com a barbaridade do genocídio nazista, se reconhece que a sociedade brasileira não era aberta a isso. Isso é de fato uma experiência positiva para eles. A crítica que tem que se fazer é que eles não conseguiram ver a segregação e enxergar que a maioria dos pobres eram e hoje ainda são negros. Apesar do conhecimento histórico, eles não questionam em nenhum momento a atuação da classe dominante, incorporando o darwinismo social e o racismo subliminar das elites. Apesar de enxergarem a pobreza, eles não conseguem fazer uma crítica social. Além disso, eles vêem que na legislação não existe segregação, apartheid, como nos Estados Unidos, considerando isso algo modelar. Enquanto o século 19 inteiro considera a Europa um modelo para o Brasil, a metrópole um modelo para a periferia, autores do século 20, como Stefan Zweig, por exemplo, invertem a ordem, considerando o Brasil um modelo para a Europa, no caso, a Europa nazista. Tudo isso, às custas da idealização das nossas relações raciais.

Até que ponto as investigações dos viajantes alemães foram assimiladas pela historiografia brasileira?

A literatura de viagem do século 19 tem um caráter "fundador". Muitos viajantes estrangeiros daquela época descortinaram os rincões mais afastados, enquanto a maioria dos intelectuais brasileiros estava nas capitais. Na época, houve uma incorporação até certo ponto crítica da literatura de viagem estrangeira por parte dos intelectuais brasileiros. Autores brasileiros, seja na historiografia, seja na literatura, buscaram referências ou mesmo inspiração nos livros de viagem para refletir sobre o Brasil. Martius é por exemplo um dos "precursores" do mito da democracia racial, ao considerar que as três etnias contribuíram para a formação da nação brasileira. Suas idéias repercutiram na historiografia brasileira do século 19. A literatura de viagem daquele século foi importante para a produção intelectual da época, e ainda é para a pesquisa atual, por servir de fonte, entre outras, para a história social, política e econômica e para estudos na área da antropologia, botânica, zoologia, geografia, geologia, etc.

Já os livros de viagem do século 20 perdem a importância diante da crescente produção intelectual dos próprios brasileiros, sobretudo na década 30, com Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Júnior, ou antes mesmo, com Manuel Bonfim, entre outros. Já existem, portanto, intelectuais brasileiros à procura de uma identidade brasileira, dispostos a reescrever a história e a romper com os cânons do século 19. Neste momento, a literatura de viagem de autores estrangeiros contemporâneos não desperta, no Brasil, grande interesse. Ou melhor, ela não contribui para o debate intelectual que ocorria naquele momento. É por isso provavelmente que muitos destes textos não foram traduzidos, ao passo que a literatura de viagem do século 19 foi traduzida em grande parte, embora tardiamente.