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Palhaça

26 de novembro de 2009

Nunca o trágico esteve tão próximo ao cômico como nas peças de Gardi Hutter, atriz suíça considerada a palhaça número 1 do mundo. Em entrevista à Deutsche Welle, Hutter falou sobre o novo espetáculo que leva ao Brasil.

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Em 'O ponto', Hutter é esquecida embaixo do palcoFoto: Adriano Heitmann

Considerando a quantidade de prêmios recebidos e as quase três mil apresentações em quatro continentes, a atriz suíça Gardi Hutter é sem dúvida a palhaça mais conhecida do planeta.

No próximo domingo (29/11), Hutter dá início em Florianópolis a uma turnê pelo Brasil com seu novo espetáculo Souffleuse (O ponto), a tragicômica história de uma mulher que não somente trabalhava, mas também morava embaixo de um palco, até que foi lá esquecida quando o teatro mudou de lugar.

Além de Florianópolis, ela apresentará seu novo espetáculo em teatros no Rio de Janeiro, em Brasília, Fortaleza e São Luís. Em entrevista à Deutsche Welle, Gardi Hutter falou sobre seu trabalho, sua nova peça e a condição de palhaça. Diferentemente do que muitos pensam, a atriz afirmou que seu lugar é no teatro.

Theater Stück Die Souffleuse von Frau Gardi Hutter, Theaterclown
Para Hutter, o cômico não se separa do trágicoFoto: Adriano Heitmann

Deutsche Welle: Por que você se tornou palhaça?

Gardi Hutter: Eu frequentei uma escola clássica de artes cênicas em Zurique e, desde o princípio, notei que tinha um talento para o cômico e também que, em toda a literatura teatral, seja ela clássica ou moderna, simplesmente não existiam papéis cômicos para mulheres jovens.

E o palhaço sempre me fascinou. Ele é a liberdade em pessoa. A ele, tudo é permitido. Ele pode ser mau, pode ser antipático. Ele é motivo de risos, de aplausos e, por isso, ele é querido.

Você tem vantagens por ser uma palhaça mulher?

A desvantagem foi que eu não tinha exemplo nenhum a seguir. Não havia referências. Claro que Charlie Chaplin e Buster Keaton são exemplos. Mas era como se a forma feminina da comédia não existisse. Eu não sabia se o motivo era biológico ou sociológico. Essa situação me revoltava e, por outro lado, me dava a energia necessária para aguentar alguns anos até que a peça estivesse pronta.

Quando ela ficou pronta, eu só tive vantagens como mulher, porque é raro, porque é novo, porque em festivais de comédia há 18 homens e talvez duas mulheres. A imprensa reagiu com grande interesse. Passei então a ter vantagens por ser raridade.

Flash - Galerie Theaterstück Die Tapfere Hanna
'Joana D'ArPpo': a lavadeira que se achava Dom QuixoteFoto: DW / C. Albuquerque

Na sua peça Joana d'ArPpo, você faz o papel de uma lavadeira que luta contra inimigos fictícios em sua lavanderia. Até que ponto essa é uma peça feminista?

Diz-se que o palhaço não tem sexo. E não tem mesmo, mas até agora ele era só masculino. O palhaço funciona através do exagero. Ele é tão trágico que se torna cômico. Para mim, era importante que também se pudesse rir de uma mulher.

Eu sou uma mulher autônoma, com uma empresa, mas minhas peças não são ideológicas. Acho que o palhaço rejeita qualquer tipo de ideologia. Quando eu conto uma história, é a lógica da história que me impulsiona, não a minha ideologia.

Pode-se pensar que Joana d'ArPpo é uma peça feminista, mas em todas as histórias de palhaço, existem perdedores, pessoas em má situação, que estão à margem da sociedade, que passam fome, que são pobres. Charlie Chaplin, por exemplo, não faz o papel de um homem rico, feliz, mimado, mas de um mendigo. Mas, no caso dos homens, a ideologia não é questionada. No caso das mulheres, sim.

Flash - Galerie Theaterstück Die Tapfere Hanna
Lugar de palhaço é no palco, diz HutterFoto: DW / C. Albuquerque

Existem diferentes tipos de palhaço. Charlie Chaplin é um deles. Como é o seu?

Acho que esta diferença está na história que conto. Não por ser ideológica, mas por ser uma mulher, conto histórias do mundo feminino que até agora não foram apresentadas no palco. Onde já se viu uma lavadeira, uma secretária, uma Souffleuse e uma costureira, que será a próxima, em peças de palhaço?

As histórias escritas até hoje são em sua maioria histórias masculinas, o material das histórias femininas ainda não foi revelado. E isso tampouco é ideológico. Ao se introduzir uma ideologia, o palhaço some. Como artista, procuro naturalmente um material que ainda não foi utilizado.

Você utiliza pouca linguagem e também pouca mímica, mas conta uma história em suas peças. Um palhaço precisa contar uma história? E o lugar dele é no circo?

É um enorme engano achar que o palhaço pertence ao circo. No circo, há uma tradição de palhaço, mas ela é muito recente. Somente há 150 anos há palhaços em circos e, para muitas pessoas, palhaço e circo são a mesma coisa. Mas o palhaço é bem anterior ao circo. Já existiam na época dos gregos, dos romanos. O saltimbanco é um tipo de palhaço.

No teatro, encontram-se palhaços nas peças de Shakespeare, na Commedia dell'arte. O arlequim é uma espécie de palhaço. A história do palhaço se confunde com a história da civilização. Nas grandes festas de inverno, quando os mortos vinham ao mundo dos vivos, já existiam figuras bufonescas. Em toda sociedade, tais figuras foram criadas para funcionar como uma espécie de válvula de escape. E elas aparecem muito antes no teatro do que no circo.

Theater Stück Die Souffleuse von Frau Gardi Hutter, Theaterclown
Protagonista de 'O ponto' é esquecida em seu lar sob o palcoFoto: Adriano Heitmann

Em 2007, você recebeu o grande prêmio do Festival Internacional Fringe de Nova York, considerado o talvez mais importante festival de artes performáticas do mundo. Pode-se dizer que você é a melhor palhaça do planeta?

A imprensa escreve isso sobre mim, mas eu não posso dizer isso, naturalmente. Mas eles escrevem pela falta, porque existem tão poucas palhaças. Há algumas, mas em todos os festivais nos encontramos. Então eu penso: Ah, nós cinco novamente. Eu conclamo todas as mulheres: escrevam suas peças! Eu quero concorrência.

Como é a nova peça que você leva agora ao Brasil?

Para o Brasil, eu levo agora a Souffleuse (O ponto). Em comparação com a Joana, com a qual me apresentei quatro vezes no Brasil, O ponto é mais teatral. Antigamente, embora isso exista ainda hoje, havia no meio dos palcos do teatro uma cúpula e lá embaixo uma pessoa sussurrava o texto para atores que o esqueciam. Essa função era exercida, na maioria das vezes, por uma atriz mais velha e sem trabalho, que acabava assumindo o ponto do teatro.

Ela conhece os atores pela voz e pelo cheiro do pé, porque ela sempre vê o mundo por baixo. Ela construiu uma boa vida embaixo do palco. Fez lá uma casinha, com livros, quadros, flores. O caminho para o trabalho não é longe e ela tem que se vestir bem só até a cintura, porque o resto não se vê.

Mas o teatro vai fechar, porque um novo prédio foi construído e ela é então esquecida. Somente durante o decorrer do espetáculo, ela nota que está sozinha. É naturalmente uma situação triste. Isso é o que acontece hoje a muitas pessoas cujas profissões não são mais requisitadas ou foram demitidas. No caso da Souffleuse, é ainda pior. Ela é simplesmente esquecida e não pertence mais a lugar nenhum.

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Hutter é autora de suas próprias peçasFoto: DW / C. Albuquerque

No entanto, o espetáculo é engraçado. Eu atraio as pessoas através de seus verdadeiros medos e aflições. A situação da Souffleuse é muito pior do que a dos espectadores, mas eles riem dela a noite inteira. Isso é o que me fascina no palhaço – que ele possa fazer algo tão triste se tornar cômico.

Acho que quando algo é somente engraçado, 15 minutos depois ele se torna monótono. Acredito que o que faz o público amar o palhaço é o fato de ele ser trágico. Sua história é ainda mais trágica que a história das pessoas na plateia. Ao rir do trágico, o público também se liberta dos seus medos.

Entrevista: Carlos Albuquerque

Revisão: Rodrigo Rimon