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O que os alemães orientais escreviam para o governo

Marcel Fürstenau (av)18 de fevereiro de 2016

Interceptadas pela polícia secreta, cartas pessoais ao governo da RDA quase nunca chegavam aos destinatários. Livro recém-lançado reúne mais de 200 delas. Segundo ex-oposicionista, um farol de protesto contra a mentira.

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RDA perto do fim: passeatas em Leipzig, 1989, aceleraram queda do regime socialistaFoto: picture alliance / Lehtikuva Oy/Heikki Saukkomaa

"Como alguém consegue dormir à noite, sabendo que está torturando tantas pessoas, tratando-as de forma desumana, reprimindo e prendendo entre muros???", pergunta o remetente anônimo de uma carta que deveria ter chegado a seu destinatário em 25 de agosto de 1983.

Naquele dia, o chefe de Estado da Alemanha Oriental, Erich Honecker, fazia 71 anos. Provavelmente ele se permitiu saborear uma taça de vinho espumante da marca nacional, Rotkäppchen. E recebeu as homenagens do Comitê Central o Partido Socialista Unitário da Alemanha (SED) por seus supostos méritos em prol da República Democrática Alemã (RDA).

Buchcover Siegfried Suckut Volkes Stimmen
"Vozes do povo" editado por Siegfried Suckut, reúne cartas pessoais dos alemães orientais

"Inimigos do Estado" como o auto da carta em questão não eram capazes de estragar o humor dos velhos senhores do politburo – pouco interessados em saber o que achavam do real socialismo aqueles que sofriam com a falta de liberdade e uma economia da penúria. E estes eram milhões.

Os mais frustrados entre esses descontentes, que também eram os mais corajosos, enviavam, então, cartas ao governo da RDA. Porém elas não chegavam até seu destino, já que o Ministério de Segurança Estatal, conhecido como Stasi, as interceptava.

A carga de serviço era grande para o órgão da polícia secreta alemã oriental, que diariamente tinha cerca de 100 mil cartas para controlar. E não era nada fácil separar o joio do trigo.

Perdidas nos arquivos do Stasi

Poucos meses após o lançamento de um livro com piadas políticas do povo da RDA, o cientista político Siegfried Suckut explora mais um capítulo oculto das quatro décadas de existência das duas Alemanhas em seu livro Volkes Stimmen: "Ehrlich aber deutlich" – Privatbriefe an die DDR-Regierung (literalmente: Vozes do povo: "Honesto porém claro – Cartas particulares ao governo da RDA), lançado pela editora DTV.

Para tal, ele selecionou 248 entre milhares de cartas iradas dos cidadãos da RDA. Em sua publicação, ele as situa no contexto social da época, acompanhando-as de comentários críticos e de um índice detalhado.

Erich Honecker Porträt
Erich Honecker (1912-1994), chefe de Estado e partido da RDA, é o destinatário de grande parte das cartas no livroFoto: picture-alliance/dpa

Até 2005, Suckut dirigiu o setor Educação e Pesquisa do órgão encarregado dos arquivos do Stasi após a reunificação alemã, em cujos arquivos ele pôde examinar cerca de 45 mil páginas de cartas. A maioria provinha da Seção 2 do Departamento XX do Stasi, encarregada de investigar as assim chamadas "manifestações subversivas" e, se possível, coibi-las.

O cientista político, atualmente aposentado, queria entender por que os cidadãos escreviam cartas aos líderes do país socialista. Seus motivos eram diversos; conteúdo e forma variavam entre preocupação sincera com o estado de coisas na RDA e puro ódio contra o regime.

O motivo dessa cólera podia ser a falta de moradia, anos de espera por um telefone, carência de peças de reposição para as máquinas nas fábricas estatais, ou o fato de se deparar com prateleiras vazias no supermercado. O grande tema, porém, era a falta de liberdade política. Igualmente ampla era a gama dos remetentes: famílias apreensivas, coletivos de trabalho, comunistas da velha guarda, neonazistas.

"Farol de protesto contra a mentira quotidiana"

Como não encontrou nenhuma dessas cartas pessoais no arquivo federal da RDA, Suckut conclui: "Elas realmente nunca chegaram às mãos de Honecker." Isso se aplica em especial a destinatários ilustres na capitalista República Federal da Alemanha (RFA), como o ex-chanceler federal Willy Brandt, o presidente Richard von Weizsäcker ou o governador da Baviera Franz-Josef Strauss, que jamais receberam as missivas dos alemães orientais.

O lançamento de "Vozes do povo" se realizou em Berlim, nas dependências da Fundação Federal para Estudo da Ditadura do SED. Seu presidente é um antigo oposicionista do governo da RDA, Rainer Eppelmann. Ele também foi o autor de várias cartas de protesto ao regime – embora nenhuma delas esteja incluída na presente publicação.

Siegfried Suckut Hrsg. Volkes Stimmen
Politólogo Siegfried Suckut trabalhou no órgão encarregado dos arquivos do StasiFoto: privat

Naturalmente o atual deputado federal nunca obteve nenhuma resposta a qualquer de suas manifestações de descontentamento. Como muitos outros remetentes, ele suspeitava que Honecker jamais chegaria a lê-las. Ainda assim, explica, a atividade era como "uma pequena explosão": a frustração com as circunstâncias na RDA precisava de uma válvula de escape.

Mesmo 25 anos após o fim do Estado socialista, Eppelmann considera o lançamento do livro de Siegfried Suckut como uma iniciativa extremamente importante. Para ele, trata-se de "um farol de protesto contra a mentira e a desumanidade quotidianas."