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O homem que denunciou o passado nazista do Judiciário alemão

Ben Knight (ca)27 de janeiro de 2015

Aos 84 anos, Reinhard Strecker leva uma vida tranquila, mas antes foi temido por ex-nazistas que se tornaram juízes e promotores na Alemanha do pós-guerra. "Em todos os lugares, havia alguém com um passado", conta à DW.

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Reinhard Strecker in seiner Wohnung
Reinhard Strecker, em seu apartamento em BerlimFoto: DW/B. Knight

Sentado numa cela de prisão em Jerusalém, em 1961, Adolf Eichmann descobriu um livro que ele pensava poder ajudá-lo a se salvar. Ele seria executado no ano seguinte por coordenar o Holocausto e alegrou-se por possuir uma cópia da nova publicação, visto que o governo da então Alemanha Ocidental tentou proibir sua edição.

Além de uma introdução e algumas legendas explicativas, o livro continha uma coletânea de arquivos judiciais, fotografias e recortes de jornais de arquivos do Terceiro Reich, cada um com uma legenda explicativa. Todos os documentos estavam relacionados a um só homem: Hans Globke, que, em 1961, era um dos mais altos funcionários do governo da Alemanha Ocidental, vice-ministro e assessor do então chanceler federal Konrad Adenauer.

O livro intitulado Dr. Hans Globke - File Extracts and Documents (Dr. Hans Globke – Sumários de arquivos e documentos, em tradução livre) mostra que Globke ajudou na elaboração de leis antissemitas no início da década de 1930 – antes da ascensão de Hitler ao poder – e que, mais tarde, ele foi um dos funcionários mais importantes de Eichmann, com uma reputação que se espalhou por vários departamentos no regime de Hitler.

O livro era a tábua de salvação para Eichmann, que escreveu, com a ajuda dele, 30 páginas para seu advogado de defesa, detalhando a sua relação com Globke e tentando provar que seu funcionário tinha mais autoridade do que ele próprio.

Adolf Eichmann
Adolf Eichmann diante do tribunal que o julgou em Jerusalém, em 1961Foto: dapd

Eichmann fracassou, mas o livro atingiu um ponto nevrálgico, forçando Adenauer a se defender e, supostamente, provocando ameaças ao editor por parte do Departamento Federal de Investigações da Alemanha (BND).

Desvendando o passado

O autor do livro é Reinhard Strecker, um arquivista e defensor dos direitos civis, cujo trabalho tirou o sono de muitas autoridades da antiga Alemanha Ocidental na década de 1950 e 1960. Na introdução, ele escreveu: "Globke não é um caso isolado".

No início de 1960, Strecker apresentou acusações contra 49 ex-juízes, que participaram ativamente do regime nazista e continuaram a trabalhar na Alemanha Ocidental. No mesmo ano, ele mostrou suas pesquisas numa exposição – 105 pastas com arquivos meticulosamente fotografados, expostos no quarto dos fundos de um bar em Karlsruhe.

"Tudo foi completamente improvisado – mas o público lotou a exposição", lembra Strecker. E o impacto foi grandioso.

A exposição intitulada Ungesühnte Nazijustiz (Judiciário nazista impune) cresceu e foi mostrada em várias universidades do país, causando discussões entre estudantes e professores e chamando a atenção da mídia alemã e internacional. A exposição, feita sob medida para cada cidade onde era mostrada, focou em juízes e promotores locais

"Em todos os lugares, havia alguém com um passado", disse Strecker certa vez.

Strecker, que foi muitas vezes impedido de pesquisar em arquivos alemães, recebeu ajuda inicialmente do governo da Polônia, que lhe deu acesso total aos arquivos estatais, e depois do Reino Unido, onde parlamentares o convidaram a falar diante da comissão panpartidária no Parlamento.

Deutsch-israelisches Wiedergutmachungsabkommen - Porträt Dr. Hans Globke
Globke ajudou na concepção de algumas leis antissemitas na AlemanhaFoto: picture-alliance/dpa

Strecker também viajou a Israel, onde foi um dos poucos historiadores e especialistas jurídicos não judeus a ser convidado pelo Knesset para ajudar a preparar as queixas contra os criminosos de guerra nazistas.

Além de causar constrangimento para o governo Adenauer, e não poucas aposentadorias precoces de juízes e promotores, o trabalho de Strecker alimentou a tensão entre gerações, que estava ganhando fôlego na Alemanha da década de 1960 e que culminaria no movimento de 1968.

Blindado da Juventude Hitlerista

Aos 84 anos, Strecker desfruta agora de uma vida tranquila no bairro berlinense de Friedenau. Nas paredes de seu estúdio, veem-se de um lado muitos livros, incluindo clássicos da literatura britânica e americana, e do outro, o que restou de um grande depósito de arquivos processuais do Terceiro Reich.

Seus pais foram decididamente anti-Hitler. "Ao contrário de, eu diria, 90% dos advogados da época, meu pai nunca foi um membro do partido", afirmou. "Isso teve a ver com o fato de que, para os meus pais, a Igreja e a religião ainda significavam alguma coisa."

Como cristãos fervorosos, seus pais foram politicamente ativos na dura luta para manter a Igreja Protestante livre de organizações nazistas, como também fizeram todo o possível para manter o jovem Strecker longe da Juventude Nazista, o que era uma obrigação na época.

Quando a guerra terminou na Alemanha, Strecker pretendia deixar o país o mais rápido possível. "A escola não parecia ser algo importante naquela época", explicou. Aos 16 anos, ele foi de carona primeiro para a Itália e, depois, em direção a Londres. "Para mim, inglês sempre foi a língua da libertação."

Mas ele só conseguiu chegar a Paris, onde passou diversos anos na escola. Apesar de ser o único alemão na sala de aula, ele disse nunca ter enfrentado a desconfiança de seus colegas de classe franceses.

"Eles me viam somente como alguém que havia escapado", disse Strecker. Ele também se deparou com republicanos espanhóis, que lutaram contra os fascistas na Guerra Civil Espanhola. Ao retornar para a Alemanha em 1954, as viagens proporcionaram a Strecker um novo olhar, uma visão externa, e ele constatou que o país não havia mudado tanto quanto ele gostaria.

"Tive uma impressão ruim da Alemanha quanto retornei", afirmou. "Eu não gostava de ninguém no governo – o sistema Adenauer-Globke. Adenauer só tinha um objetivo – ele queria restaurar a reputação da Alemanha no mundo. Isso consumiu todo o seu tempo. Ele queria evitar que crimes nazistas fossem julgados por cortes alemãs. E ele conseguiu em grande parte."

Sob o governo Adenauer, a investigação de crimes nazistas passou a ser mais responsabilidade dos estados do que das autoridades federais alemãs. Além de tudo isso, em 1963 – quando a Alemanha estava negociando uma reaproximação diplomática com Israel – foi descoberto um memorando, em que Adenauer pedia a Israel que parasse de perseguir ex-nazistas. "Isto é intolerável para a reputação da Alemanha no mundo", dizia o documento.

Konrad Adenauer und David Ben-Gurion 1960 in New York
David Ben Gurion, premiê de Israel, e Konrad Adenauer, em Nova York, em 1960Foto: picture-alliance/dpa

Após os julgamentos de Nurembergue (1945-1949), que foram organizados pelos aliados, nenhum crime de guerra nazista foi julgado na Alemanha até o Julgamento de Frankfurt, na década de 1960, época em que o mandato de Adenauer havia terminado.

"Whistleblowers" do pós-guerra

Strecker não foi o primeiro whistleblower – o seu antecessor mais importante foi um soldado ferido na guerra, que foi escalado para trabalhar como mensageiro no Ministério alemão do Exterior antes do fim dos combates.

"Quando um novo ministério foi criado, ele ficou surpreso com os criminosos nazistas que ainda estavam por lá", recorda Strecker, que terminou trabalhando com o jovem oficial Eckart Heinze. "Havia mais membros do partido nazista no novo Ministério do Exterior do que jamais houve na época de Hitler!"

Sob o pseudônimo de Michael Mansfeld, Heinze escreveu uma série de artigos expondo os criminosos de guerra para os quais, de repente, passou a trabalhar. Na época, Strecker estava recuperando o seu atraso na educação alemã, estudando línguas indo-germânicas na Universidade Livre de Berlim e reunindo alguns estudantes para preparar a sua exposição.

Ele passou a receber ajuda da União de Estudantes Socialistas Alemães (SDS), uma associação que se tornou um fardo, uma vez que grande parte da impressa alemã ocidental, ao lado do governo, viria a denunciá-lo como comunista pago pela União Soviética. "Uma imensa tolice", é tudo o que Strecker diz sobre isso.

"Mas eu nunca pensei que meu trabalho viria a ter êxito, porque não era possível prejudicar esta máfia concreta de antigos nazistas na Alemanha", afirmou. "Especialmente porque o governo conseguiu impedir, com sucesso, que qualquer crime de guerra nazista chegasse a um tribunal federal alemão. Somente os tribunais estaduais lidaram com a questão, e só mais tarde."

Agora, passados mais de 50 anos da exposição de Strecker, e 70 da libertação de Auschwitz, o Judiciário alemão parece finalmente tentar corrigir lacunas passadas. Em 2014, foi preso Oskar Gröning, conhecido como o "contador de Auschwitz".

Aos 93 anos, ele deverá ser levado a julgamento ainda no primeiro semestre deste ano. Dada a sua idade, é improvável que Gröning cumpra pena, mesmo que seja condenado. Mas o julgamento terá um valor simbólico para um Judiciário que antes tentou ignorar e negar o seu passado.