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O fenômeno Pinóquio

Augusto Valente14 de outubro de 2002

No final de semana tiveram estréia uma ópera infantil de Wilfried Hiller e um filme de Roberto Benigni, ambos sobre o boneco que queria ser gente.

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Um boneco mentiroso vai à óperaFoto: dpa

Quem não conhece Pinóquio? Na popularíssima versão de Walt Disney, ele é uma gracinha de boneco, irresistível mesmo quando mente até o nariz crescer um metro. Nesta película que enterneceu tantas gerações até as lágrimas, todas as suas travessuras acabam sendo perdoadas, e ele chega ao inevitável final feliz transformado num menino de verdade, ao lado do "pai" Geppetto, do Grilo Falante e da Fada.

Na verdade, a fonte literária da história é bem mais drástica. Carlo Collodi, que publicou os episódios desse folhetim entre 1881 e 1883, tinha uma meta clara: demonstrar aos pivetes florentinos que passavam pelo movimento de alfabetização as terríveis conseqüências da desonestidade e da preguiça.

Para tal, o autor não poupou meios: logo nos capítulos iniciais, num acesso de destempero, Pinóquio esmaga o Grilo, o qual só retornará ocasionalmente como espírito, uma espécie de consciência sinistra e acusadora. Enfim, o Pinóquio original também consegue completar o caminho da humanidade e educação, porém aqui este é árduo e doloroso, passando até mesmo pelo cadafalso.

Apesar de toda a dureza – ou por causa dela –, Pinóquio é o livro infantil mais popular da Itália e acabou conquistando o mundo, quase sempre em adaptações abrandadas.

Quase ao mesmo tempo, duas versões completamente distintas dessa "saga de tornar-se humano" estrearam, na Alemanha e na Itália. Mesmo descontando-se o fato de que a ópera, em princípio, representaria um gênero mais "erudito" do que o do filme comercial, esses dois produtos culturais ilustram de forma vívida a relação de dois povos com pedagogia, disciplina e mesmo com a tradição.

"Um sonho italiano"

Pinocchio, ein italienischer Traum

(Pinóquio, um sonho italiano) estreou no sábado (12), simultaneamente em Trier e Munique. Essa encomenda da Wiener Staatsoper pertence ao gênero relativamente raro da ópera infantil, que, além de L'enfant et les sortilèges, de Maurice Ravel, e Noye's Fludd, de Benjamin Britten, conta com bem poucos representantes de relevância musical.

Ao escrever o libreto para Wilfried Hiller (também compositor da ópera Peter Pan), Rudolf Herfurtner colocou-se a questão: por que retomar um material didaticamente tão obsoleto?

"O adaptador contemporâneo tem que se perguntar se pode apresentar tal herói e tal mensagem como identificação para os jovens espectadores. A resposta nos pareceu ser um claro 'sim/não'. (...) Queremos mostrar às crianças todos os episódios do Pinóquio que elas conhecem e esperam. Porém queremos ir encontrá-las em sua realidade. Por isso, nosso protagonista (Carlo) é uma criança, como elas (...), numa situação que conhecem bem: um adulto, dono da verdade, diz-lhe que caminho tomar, ou seja, o caminho reto, pois tudo o que é torto leva à infelicidade."

Carlo obedece, mas como continua sendo um menino cheio de energia e ávido de aventura, ele se deixa seduzir para dentro de um bosque, o lugar do sonho, do inconsciente. É nessa província psicológica que também se situam as cenas de violência, problemáticas para Herfurtner.

Para o libretista, a trajetória ideal é integrar o Pinóquio dentro de nós, não domá-lo e destruí-lo. Mais do que reproduzir as lições de Collodi, ele as reinterpretou, transformando-as em veículo para uma mensagem, a seu ver, relevante e de valor pedagógico.

"Um italiano de verdade"

Tudo indica que Roberto Benigni não teve que refletir tanto para realizar seu filme de 40 milhões de euros. Afinal, o mais tardar desde a premiação de A vida é bela em Hollywood e Cannes, o cômico toscano pode perfeitamente dar-se ao luxo de simplesmente ser... como é.

A estréia de Pinocchio na Itália, na sexta-feira (11) já era aguardada com ansiedade: em apenas três dias, 200 mil espectadores lotaram mais de 900 salas de exibição. O projeto tem origem nobre. Segundo Benigni, trata-se de um sonho que tivera junto com o lendário diretor Federico Fellini, falecido em 1993: "Em seu leito de morte, ele me disse então: Você tem que fazer o Pinóquio".

Mas, a julgar pelas declarações do próprio Benigni, a atual versão deve estar bem longe da profundidade e do humor cáustico do autor de Amarcord: "Quero que as pessoas se sintam aconchegadas e que se beijem, ao sair do cinema", explicou. Entretanto a aceitação dessa filmagem da obra de Collodi não é unânime, sobretudo pela fidelidade exagerada ao livro. Um crítico italiano declarou: "Pinóquio dança, ri e chora, porém falta magia ao filme".

O novo Pinocchio das telas conta com um grande trunfo, pelo menos em sua terra natal: a nação italiana se identifica irresistivelmente com esse moleque de madeira e nariz quilométrico. O presidente italiano, Carlo Azeglio Ciampi, fez questão de estar presente à estréia. Para ele, trata-se de "uma película muito sensível, de grande estilo", onde "reencontramos os valores da Itália e o caráter italiano".

A matéria de capa da revista Panorama, intitulada "Pinóquio – um italiano autêntico", esclarece: o boneco é alguém que consegue contornar com fantasia as armadilhas do cotidiano e da vida. "Imaginativo até à mitomania, vaidoso, mentiroso, impaciente e, ao mesmo tempo, conformista", o anti-herói "está repetidamente à beira do precipício, mas sempre salva a própria pele".

Pinocchio

tem estréias marcadas para o Natal, nos Estados Unidos, 24 de janeiro de 2003, no Brasil, e 30 de janeiro, na Alemanha.