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Memória & literatura

24 de setembro de 2010

A memória é um dos principais temas que permeiam a literatura contemporânea argentina. Durante a Feira do Livro de Frankfurt, que terá o país como convidado de honra em 2010, ditadura militar (1976-1983) será lembrada.

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Mães da Praça de Maio: ditadura militar ainda não cicatrizou no imaginário coletivoFoto: AP

Em junho de 1978, quando os olhos do mundo se voltavam para a Argentina, onde acontecia a Copa do Mundo, o regime militar exterminava, torturava e matava quem se opunha ao governo do país. Esse é o ambiente criminoso descrito por Martín Kohan em seu romance Duas vezes Junho, escrito a partir da perspectiva de um jovem que presta serviço militar na ocasião.

Quatro anos mais tarde, enquanto as Forças Armadas argentinas iniciavam a Guerra das Malvinas, a jovem guardiã María Teresa era responsável pela vigilância em uma escola de elite de Buenos Aires – enredo de Ciências Morais, romance de Kohan, cuja tradução para o alemão acaba de sair.

"Quando os militares tomaram o poder, em 1976, eu tinha nove anos de idade. Durante a Guerra das Malvinas, eu tinha 15 anos. E um ano depois, em 1983, acabava a ditadura", lembra o autor, hoje com 43 anos. "Na infância, me sentia envolvido por uma certa atmosfera social, tinha algo estranho no ar", conta Kohan. No entanto, segundo o escritor, disso não resultou nenhuma imagem exata da situação política do país. Sua literatura, diz Kohan, aproxima-se mais da percepção da atmosfera do que da descrição de resultados concretos. Kohan é um dos escritores argentinos que se ocuparam, nos últimos anos, deste capítulo negro da história de seu país.

"A ditadura é a nossa Shoah"

"A palavra memória é, em nosso país, sinônimo de lembrança da hegemonia militar", explica Patricia Kolesnikov, editora do caderno de cultura do diário argentino Clarín. "A ditadura é a nossa Shoah", diz ela. Para a maioria dos argentinos, o período ditatorial foi parte de suas próprias vidas.

Patricia Kolesnikov, Feuilleton-Chefin der argentinischen Zeitung Clarín
Patricia KolesnikovFoto: DW

Kolesnikov acha interessante que, nos últimos anos, autores muito jovens tenham escrito sobre a ditadura no país, mesmo que eles não tenham pessoalmente vivido nada daquele período. Alguns desses escritores integram em suas obras experiências pessoais, que têm relações diretas com a ditadura.

Felix Bruzzone, autor do volume de contos 1976, por exemplo, nasceu no ano do golpe militar na Argentina, filho de um pai desaparecido durante o regime. E os pais de Laura Alcoba, autora do romance A Casa dos Coelhos, pertenciam à organização guerrilheira Montoneros, perseguida durante a ditadura.

Dimensões da lembrança literária

Na Argentina, os livros sobre a ditadura não são um fenômeno dos últimos tempos. Em pleno regime militar, autores já escreviam sobre o estado do país de maneira cifrada. Depois da volta da democracia, foi possível falar, sem censura, sobre o terrorismo de Estado e sobre os desaparecidos, cujo número é estimado em torno de 30 mil, além do sequestro de aproximadamente 500 bebês.

Segundo Kohan, "primeiro falou-se sobre as experiências das vítimas, depois sobre a vitimização da sociedade e sobre aqueles que sofreram diretamente as consequências do regime criminoso, bem como dos parentes dos desaparecidos". Um pouco mais tarde surgiu então uma nova dimensão da lembrança, analisa o escritor, com o aparecimento de uma literatura acerca do movimento revolucionário dos anos 1960 e 1970, que antecedeu o golpe militar.

Hoje, autores como Martín Kohan e outros de sua geração mantêm um olhar distanciado dos acontecimentos daquela época, através de uma abordagem literária mais indireta do assunto. "Para mim, o importante não é a transposição literária de algo que tenha sido vivenciado diretamente. Nos meus romances, distancio-me da dimensão documental, do relato das testemunhas", acentua Kohan. Nestas alturas, já se tornou possível também apontar, fala o escritor, que a sociedade argentina não tenha sido apenas vítimas da ditadura, mas também cúmplice da mesma.

Romances sobre cidadãos comuns

Dessa forma, os protagonistas dos romances de Kohan não são militares como Jorge Videla e seus comparsas, mas sim cidadãos comuns. Argentinos jovens, nem vítimas nem algozes do regime militar, mas que respondem às tarefas que lhes delegam com um teor exacerbado de dedicação, obediência e consciência de suas obrigações. Eles não questionam nada e se ajustam perfeitamente ao sistema. "Me interessou questionar como horrores e atrocidades podem ser vivenciados como se tudo fosse normal e justificados através de um discurso moral", diz Kohan.

Schriftsteller Martín Kohan, Thema Erinnerung in der argentinischen Literatur
Martín KohanFoto: DW

O maquinário político de opressão não funciona sem pequenas rodas dentadas. "São essas rodas que tocam o cotidiano", completa o escritor, cujos livros não chegam a ser best-sellers, mas são bem vendidos no mercado argentino.

Há uma necessidade de compreender esse período doloroso da ditadura e uma abordagem literária pode auxiliar nessa questão. Os crimes do regime militar não são, para os argentinos, de forma alguma um capítulo encerrado da história. Videla foi levado a julgamento, ao lado de outros responsáveis pelo regime de então. A busca pelos desaparecidos continua. Ou seja, ainda vai se escrever por um bom tempo sobre a ditadura militar no país.

Autora: Victoria Eglau (sv)
Revisão: Carlos Albuquerque