Lorenza Böttner e o corpo
Enquanto discurso médico e modos de representação tendem a dessexualizar e a transformar o corpo deficiente em algo sem definição de gênero, trabalho performático de artista chilena erotiza o corpo trans e sem braços.
Lorenza Böttner na Documenta de Kassel
A transgeneridade é um dos temas abordados na atual Documenta de Kassel. É nesse contexto que o trabalho da artista chilena Lorenza Böttner (1959-1994) encontra o seu lugar na maior mostra mundial da arte contemporânea. A foto mostra um autorretrato pintado com a boca e os pés, em que a artista trans e sem braços amamenta uma criança.
Deficiência e exclusão
Lorenza nasceu em 1959 como Ernst Lorenz Böttner numa família de origem alemã em Punta Arenas, no Chile. Após ter os braços amputados devido a um choque elétrico, Böttner partiu aos 14 anos para a Alemanha para uma série de operações plástico-cirúrgicas. Em Lichtenau, perto de Kassel, ela cresceu como "deficiente" e sofreu a mesma internação e exclusão que os chamados "Filhos da Talidomida".
Autoconstrução subjetiva e artística
Lorenza recusou-se a usar próteses, aprendeu a pintar com os pés e a boca e estudou na Academia de Belas-Artes de Kassel, onde se graduou com um trabalho intitulado "Behinderter?" ("Deficiente?"), em que questiona a categoria "deficiência". Nesse momento, dizem os curadores da mostra em Kassel, teve início em Lorenza Böttner um processo duplo de autoconstrução subjetiva e artística.
Subjetividade transgênera sem braços
Lorenz passou a se chamar Lorenza, confirmando uma posição transexual feminina. Os desenhos e autorretratos de Lorenz como mulher, pintados com a boca e os pés; em roupas de mulher desenhadas para pessoas sem braços, como também sequências fotográficas que documentam o processo de transformação, funcionam "como tecnologias performáticas da criação de uma subjetividade transgênera sem braços".
Pintores com a Boca e o Pés
Lorenza Böttner transformou a prática da pintura em arte performática ao fazer da rua um palco da politização da diferença corporal. Assim, ela seguiu, de certa forma, a tradição dos Pintores com a Boca e o Pés, que ganham o seu sustento pintando em praças e ruas.
Arte de performance contemporânea
Embora o trabalho de Lorenza se relacione com essa tradição da pintura de rua, através dos temas representados (como no quadro de cenas de brutalidade policial) e através da combinação da pintura com a boca e os pés com uma linguagem antes conceitual, a sua obra se orienta na arte de performance contemporânea, explicam os curadores.
Pés na história da arte
Böttner esteve ligada ao Disabled Artists Network (Rede de Artistas com Deficiência) e defendeu a importância da arte feita com a boca e os pés, lutando para que a história da arte a reconhecesse como um gênero. Aqui se vê um autorretrato em grande formato em que a artista teuto-chilena deixou claramente a marca de seus pés sobre a tela.
Trabalho de resistência
Lorenza Böttner lutou ativamente contra os processos da dessubjetivação, da incapacitação, do internamento, da dessexualização e castração, que as sociedades normalizadoras modernas atribuem a "outros tipos corporais". Em 1988, Böttner mudou-se para Barcelona. Ela morreu em 1994 devido a complicações ligadas ao HIV.