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Libreto visual resgata tradição da Poesia Concreta brasileira

Laís Kalka10 de maio de 2002

A brasileira Simone de Mello, autora do libreto da ópera "O Cristal de Orfeu", falou a DW-WORLD sobre o processo de criação, a realização e a reação do público e dos internautas.

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Cena de «O Cristal de Orfeu»Foto: Regine Körner

O que distingue o libreto de uma ópera concebida para duas mídias – o palco e a internet – do de uma ópera convencional?

O paralelo entre o uso da linguagem verbal na ópera e nas novas mídias é a sua dependência direta de outras linguagens: a visual e/ou cênica, a musical e/ou dramatúrgica. O espectador do teatro musical e o usuário da internet experienciam a palavra de forma necessariamente fragmentária e procuram construir o sentido do (hiper)texto em associação com a imagem e o som. Partindo deste princípio, escrevi um libreto visual, resgatando uma tradição fundamental da literatura brasileira contemporânea, a Poesia Concreta.

Por um lado, os textos visuais colocam o leitor/ouvinte na posição de Orfeu, em busca de Eurídice, em busca do sentido. Os labirintos do Orco se traduzem em estruturas hipertextuais, que podem ser lidas em diversas direções, estruturas que rompem a linearidade, para produzir outras camadas de sentido, apontando para certas possibilidades musicais.

Por outro lado, o libreto também funciona como uma máquina de busca, que associa arbitrariamente diferentes motivos da mitologia por meio de coincidências visuais/simbólicas: o tabu do olhar de Orfeu e o olhar mortal da Medusa; a cobra que matou Eurídice e que levou Tirésias se transformar em mulher; as imagens femininas que se sobrepõem na memória de Orfeu; o argonauta que "ofuscou" a voz das sereias com sua música e foi esquartejado pelas fúrias.

A concepção do libreto parte do pressuposto de que a comunicação – entre Orfeu e Eurídice, entre o observador/espectador e a obra-de-arte – não pode ser dissociada do ruído da mídia. O espectador procura decifrar os fragmentos de linguagem, assim como o Orphée de Cocteau procura sintonizar as mensagens do Orco no rádio do carro. A própria operação da música em relação à palavra também é uma operação arqueológica: através de estruturas microtonais e de uma dramaturgia musical repleta de sutilezas, o compositor Manfred Stahnke descobriu nesses fragmentos órficos outras camadas de sentido, um sentido sinestésico, muitos outros cristais de Orfeu.

O que considero instigante é que, numa ópera que envolveu aspectos tão múltiplos em sua concepção, você assine justamente o libreto. Ou seja, um trabalho de criação literária num idioma que não é sua língua materna...

Orpheus-Kristall - Oper in München
Cena de «O Cristal de Orfeu»

O acesso a uma língua estrangeira é geralmente menos intuitivo e mais refletido do que o acesso à língua materna. Este estranhamento pode ser canalizado como uma "mais-valia" estética. Quem adquiriu uma segunda língua tem todas as surpresas do aprendizado gravadas na memória, associações sonoras percebidas através de tantos mal-entendidos, aprendidas através do erro. O falante de uma segunda língua tem a chance de descobrir um teor informativo em coisas que já são óbvias (ou seja, não-informativas) para um falante nativo. O distanciamento em relação a uma segunda língua possibilita, por exemplo, reconhecer conscientemente associações etimológicas já sedimentadas e resgatar seu teor metafórico. Para mim, a língua alemã – com sua forte concretude lexical e seu imenso repertório de imagens embutidas nos conceitos – abre novas perspectivas de lidar com a materialidade da linguagem poética.

O compositor Manfred Stahnke destacou a minha "mágica sobreposição de palavras", mas na verdade esta mágica – de associações sonoras e etimológicas – não é minha e sim da própria língua. No entanto, trabalhar com um compositor, trabalhar a palavra em função da música também implica descobrir um código comum entre a linguagem verbal e a musical, descobrir correspondências semióticas – além do código verbal – que possibilitem um diálogo intermídia.

Considerando as reações às apresentações em Munique, você considera o público "preparado" para esta combinação de dois mundos virtuais tão distintos? Os espectadores corresponderam às expectativas da equipe idealizadora do espetáculo?

Eu inverteria a pergunta. Toda a equipe teria que se perguntar se conseguiu atingir o público, se realmente conseguiu atingir a meta de mostrar o paralelismo e a dissociação entre a ópera, como obra de arte integral, e as possibilidades de interação das novas mídias. Na minha opinião, a fascinação com a high tech ainda é tão exagerada que leva os artistas a lidar de forma meramente lúdica, quase ingênua, de forma bastante superficial com o potencial das diferentes mídias e suas possíveis interações. Foi por isso que eu tentei resgatar uma tradição intermídia low tech, a Poesia Visual. Afinal, já dispomos de diversas tradições artísticas que experimentaram com o "excedente" de informação gerado pelo contato entre as diversas mídias.

Na minha opinião, a maioria das produções da 8ª Bienal de Ópera Contemporânea de Munique, inclusive O Cristal de Orfeu, não conseguiram concretizar o que imaginaram na concepção. Talvez por terem se perdido no entusiasmo pela esnobação de tecnologia. O projeto que mais apreciei na Bienal foi a Partitura Caminhável, do artista e compositor Axel Nitz: uma mera exposição de textos, instruções de uso que levam o observador a compor – através de ações e gestos – o seu próprio espetáculo. Um projeto conceitual que mostra que interatividade pode ser perfeitamente atingida com tinta e papel.

Qual foi a repercussão entre os internautas?

Orpheus Kristall - Oper in München
Cena de «O Cristal de Orfeu»

O mérito do projeto da web designer Bettina Westerheide é colocar o usuário na posição de busca de Orfeu e obrigá-lo a lidar com uma lentidão atípica para a mídia eletrônica. A sensibilidade do website fascinou muitos internautas.

Quanto à transmissão da ópera em live streaming, via internet, ainda não recebi reações. Apenas os compositores Chris Brown, de Berkeley, Mari Kimura e Hans Tammen, de Nova York, e Anne La Berge, de Amsterdã, que intervieram no evento da ópera através do software quintet.net, do compositor Georg Haidu, deram um feedback positivo sobre as apresentações públicas realizadas em todas essas cidades. Foram apresentações "descentradas" do evento em Munique, onde a ópera em si funcionou apenas como pano de fundo para a atuação live dos diversos compositores.

Existe a perspectiva de a ópera vir a ser montada em outro palco/espaço virtual num futuro próximo?

Após a crítica ter lamentado que a encenação e as interferências de sons computadorizados apenas ofuscaram a complexidade e beleza da partitura, o compositor Manfred Stahnke planeja apresentar a ópera como oratório, sem efeitos de qualquer espécie. Depois de tanto show de mídia, talvez seja natural uma nostalgia meio retrô.