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Olhos nos olhos

17 de maio de 2011

Em entrevista à Deutsche Welle, cineasta residente em Berlim falou do cinema brasileiro, de seu novo filme em Cannes e da sua relação com o universo feminino de Chico Buarque em "O abismo prateado".

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'O abismo prateado' tem Alessandra Negrini no papel principal
'O abismo prateado' tem Alessandra Negrini no papel principalFoto: 2011 RT Features

Apesar de não ter nenhum filme concorrendo na mostra principal do Festival de Cannes 2011, o Brasil está representado com dois longas e dois curtas-metragens naquele que é considerado o mais importante festival de cinema do mundo.

Com um filme inspirado na canção Olhos nos Olhos, de Chico Buarque, o cineasta cearense Karim Aïnouz foi selecionado para a Quinzena dos Realizadores, importante mostra paralela do Festival de Cannes que enfoca o cinema de autor.

Estrelado por Alessandro Negrini e Thiago Martins, O abismo prateado, título do novo filme de Aïnouz, conta 24 horas na vida de Violeta, uma mulher de 40 anos que se aventura pelas ruas do Rio de Janeiro após saber que foi abandonada pelo marido.

A estreia do novo filme do diretor de Madame Satã (2002), O céu de Suely (2006) e Viajo porque preciso, volto porque te amo (2010) será nesta terça-feira (17/05) no Teatro Croisette, em Cannes. Em entrevista à Deutsche Welle, o cineasta brasileiro residente em Berlim falou, entre outros, sobre seu novo filme e sua relação com o universo de Chico Buarque.

Deutsche Welle: Depois de Madame Satã, que concorreu na mostra Un Certain Regard, em 2002, esta é a segunda vez que você leva um filme a Cannes. Quais suas expectativas para o seu novo filme O abismo prateado na Croisette?

Karim Aïnouz reside em Berlim
Karim Aïnouz reside em BerlimFoto: Karim Ainouz

Karim Aïnouz: Cannes, Berlim e Veneza são os festivais de cinema mais prestigiosos do mundo. Estar com um filme num desses festivais é um privilégio, é com certeza a melhor maneira de começar a vida de um filme com a maior visibilidade e com o maior prestígio que ele pode ter. Dessa forma, Cannes é uma boa vitrine, um lugar muito privilegiado para se lançar um filme.

Com seu novo filme O abismo prateado, você concorre este ano na Quinzena de Realizadores, mostra paralela de filmes autorais. Como foi o início desse projeto?

O produtor Rodrigo Teixeira havia comprado os direitos sobre algumas músicas de Chico Buarque. Ele me perguntou se eu não queria fazer um filme inspirado numa dessas músicas. Eu perguntei: Pode ser Olhos nos Olhos? Ele disse que sim, então o ponto inicial foi imaginar um filme a partir de uma canção.

Por que você escolheu essa canção?

Essa era uma música que eu sempre ouvia para curar fossa. E você sabe, para curar fossa a gente tem que entrar cada vez mais nela. E eu sempre quis fazer um filme de amor e essa canção é escrita como se fosse uma carta de amor. Na verdade, o Viajo porque preciso também foi um filme de amor bastante parecido com este, porque são histórias de separação.

Nessa sua nova história de amor você acompanha um dia na vida de Violeta, uma mulher que foi abandonada pelo marido. Porque somente um dia?

Porque eu estava muito interessado em fazer um filme sobre uma sensação, sobre como você reage a uma perda. Quando eu li a música, eu não a li somente como uma música, mas como uma carta de reencontro. Além da perda, o que há de traumático nessa história é que esse homem não olhou nos olhos dela, não deu chance para ela se defender.

O filme acontece numa noite, porque eu queria imaginar a dor que essa mulher passou após ter sido abandonada subitamente. O filme fala sobre a sensação de perder alguém de uma hora para outra, alguém que deixou um recado no celular, "vou embora", depois de 15 anos de relacionamento. Mais do que fazer um filme descritivo sobre o que a música fala, eu procurei compreender o que gerou aquela música, quem era o sujeito daquela história.

Filme relata um dia na vida de uma mulher abandonada
Filme relata um dia na vida de uma mulher abandonadaFoto: 2011 RT Features

Por que você escolheu o título O abismo prateado para contar uma vivência de abandono?

Eu preferiria que o público descobrisse isso por si mesmo. Mas, de qualquer forma, você pode olhar para um abismo como um buraco ou pode pensar que lá embaixo existe algo que seja redentor. Na verdade, ela se deparou com um abismo. Uma perda súbita é sempre uma sensação abissal. Mas ao mesmo tempo a palavra prateado vem acompanhada de uma possibilidade de certo futuro, um certo porvir.

Como o filme se relaciona com Chico Buarque?

Olha, eu preferi não ter uma relação com o Chico Buarque. Ele é um dos compositores mais importantes da história da música brasileira. Então, eu fiquei com medo de ficar tendo uma relação reverencial diante do Chico e só fui conhecê-lo recentemente, há cerca de três semanas, quando houve o anúncio do convite de Cannes. Nós fomos apresentados no estúdio onde ele estava gravando seu novo disco. Eu queria conhecê-lo e mostrar a ele minha gratidão.

Ele perguntou sobre o filme?

Perguntou, e eu falei: "Daqui a pouco você vai ver!"

Em vez de uma mulher, se fosse um homem, como seria sua história?

Que boa essa pergunta. Eu pensei realmente num determinado momento que poderia ser um homem. Mas, apesar de ser o Chico, quem está escrevendo aquela carta é uma mulher. Eu fiquei muito intrigado quando surgiu a oportunidade de fazer o filme, porque o Chico tem uma capacidade muito grande de falar do universo feminino de um ponto de visto masculino, onde ele se apaga de alguma maneira.

Flash-Galerie Film O abismo prateado
Abismo também pode ser algo redentor, diz AïnouzFoto: 2011 RT Features

Então, tão longe do Chico Buarque você não esteve?

Não, de forma alguma. Quanto esse processo todo começou, havia questionamentos maiores do que a música: onde o filme vai ser feito, a partir de que ponto de vista, o que é o universo do Chico Buarque, o que é a classe média, tudo isso são questões que vieram do conjunto da obra e do imaginário do Chico Buarque.

Com quem você está concorrendo na Quinzena dos Realizadores?

Olha, tem filme do mundo inteiro, filmes do Benelux, das Filipinas, tem um outro filme latino-americano da Colômbia. Mas é tão importante já ter sido selecionado. O fato de estar lá já é um grande prêmio.

A sua atriz principal, Alessandra Negrini, é um rosto bastante conhecido da televisão. Existe uma espécie de dependência do cinema brasileiro em relação à TV?

Eu não diria dependência, mas um problema. Porque é um país onde você tem canais de televisão com índices de audiência impressionantes. Porque é um país onde o cotidiano das pessoas é regido por uma grade de televisão que não muda há 40 anos. A presença na televisão no Brasil é muito forte e compromete de alguma forma a existência do cinema, porque se trata de uma população que está acostumada com um repertório visual televisivo.

Mas, ao mesmo tempo, quando se tem um filme que trabalha com certos parâmetros de gênero, como foi o caso do Tropa de Elite, então é um grande sucesso. O Tropa de Elite é um filme de ação, um formato conhecido da televisão. Então, ao mesmo tempo que a onipotência da televisão no Brasil é uma questão, acho que algumas coisas estão começando a se apontar em outro sentido.

Este meu novo filme, por exemplo, "flerta" com filme de terror em alguns momentos, ou seja, ele se relaciona com o gênero, que é um código já estabelecido e com o qual o público se relaciona de forma muito mais familiar. E o filme também fala sobre a classe média, que até agora parecia ser propriedade privada da televisão.

Cartaz do filme
Cartaz do novo filme de AïnouzFoto: 2011 RT Features

É interessante observar que o outro longa brasileiro em Cannes, o Trabalhar Cansa, que concorre na mostra Un Certain Regard, também é um filme de classe média. A questão do gênero, a questão de que parcela da população se representa é algo muito interessante que está acontecendo dentro da paisagem cinematográfica contemporânea no Brasil.

Você já mora na Alemanha há algum tempo, chegando até mesmo a ter editado seu novo filme em Berlim. Como você vê o novo cinema alemão?

É um cinema onde o roteiro é muito importante, mas eu sinto falta de uma certa bagunça, uma certa improvisação, um certo acidente. Ao mesmo tempo é um cinema que tem uma precisão e que tem uma coisa muito bacana: é um cinema que tenta com muito esforço se relacionar com o público. Há a Escola de Berlim, que acho particularmente interessante, porque é um cinema mais autoral e que também tem um certo frescor.

O seu filme parte de um texto. Por haver essa cultura da televisão no Brasil, a imagem teria uma importância maior tanto no cinema quanto na televisão?

A questão da imagem é irrelevante na televisão brasileira. Você pode ver uma novela no rádio. Eu não acho que a visualidade seja um traço forte da televisão brasileira. Pelo contrário, ela é irrelevante. O que interessa é o texto, o melodrama. O que me interessa nesse meu novo filme em particular é falar sobre esse universo da classe média, que é uma arena da televisão, mas com outro olhar.

Entrevista: Carlos Albuquerque
Revisão: Alexandre Schossler