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Hanan, a refugiada síria que carregou a Tocha Olímpica

Marina Estarque, de São Paulo14 de maio de 2016

Com apenas dez anos de idade, ela descreve os horrores da guerra em seu país. Ela gosta do Brasil e, apesar de sentir saudades de casa, não pensa em voltar. Levar a Tocha Olímpica foi o "maior presente" de sua vida.

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Hanan Dacka
Foto: ACNUR/Gabo Morales​

"Você quer ver a tocha?", pergunta Hanan Dacka, animada. Com a confirmação, a menina síria, de dez anos, corre para arrastar o sofá da quitinete no Glicério, região central de São Paulo, onde mora com seus 11 parentes. Atrás do móvel, ela guarda seus dois tesouros: uma sapatilha de balé e a tocha olímpica.

Hanan fugiu da guerra na Síria e se refugiou com a família no Brasil há pouco mais de um ano. Ela foi uma das primeiras pessoas a carregar a tocha olímpica, no revezamento em Brasília, no início do mês. A chama deve passar por 300 cidades até chegar à cerimônia de abertura, em 5 de agosto, no Rio de Janeiro.

"Foi o maior presente da vida", conta ela, com o sorriso largo, desfalcado por um dente de leite. "É uma coisa bem especial e importante. Eu representei as crianças refugiadas da Síria."

Hanan está feliz de morar no Brasil. Diz que se sente uma brasileira normal. Para ela, os pontos altos do país são as pessoas, a escola, brigadeiro, o balé e a ginástica rítmica da tia Eva – professora que dá aulas gratuitas no bairro. "E ganhei uma menina, a Sara", comemora Hanan, cuja irmã nasceu nesta sexta-feira (13/05).

O único problema é o português, que ela considera difícil: "Tipo assim, eu ainda não sei ler e escrever bom". Mas Hanan se comunica com facilidade, mesmo sem nunca ter feito curso. "Em dois meses na escola eu já estava falando. Não sei como eu aprendi", confessa.

Ela busca o caderno cor de rosa e exibe as anotações em árabe, inglês e português, além de uma declaração da amiga: "Te amo, Hanan". "As minhas colegas gostam de mim", diz orgulhosa.

Pelo que ela conta, a professora também. Diz que "a tia" se comoveu com as sua histórias sobre a guerra na Síria. "A minha professora é muito legal. Ela sente a dor que você tá. Uma vez ela pegou, eu sentei no colo dela, ela ficou chorando comigo e fez carinha [carinho]." Por isso, quando Hanan foi ao Rio de Janeiro, convidada por uma emissora de TV, decidiu trazer um souvenir para a professora. "Um Cristão, aquele branco", descreve, com os braços abertos.

Além da recém-nascida, Hanan tem uma irmã de um ano, Yara. Mustafá, o mais velho dos irmãos, tem 16 anos e trabalha vendendo capinhas de celular. O pai, Khaled, está empregado numa fábrica de capacetes, mas o salário é baixo. "Meu pai quer que Mustafá estuda. Mas as coisas estão meio complicadas, você sabe, são 11 pessoas em casa", diz a menina.

A casa no chão

Hanan sente saudades da Síria, principalmente dos amigos, da escola e da comida de lá – "que é mais delícia". Também sente falta da sua casa, na cidade de Idlib. "Era maravilhosa, nossa! Tem um quintal bem grandão, cheio de passarinhos, com piscina, tem tudo!" Hanan não sabe se a casa ainda está de pé. Pergunta ao pai, que responde negativamente e mostra fotos do bairro destruído.

"Páááá! Pooou!", a menina faz sons de explosões e imita as bombas caindo do céu. "Já está tudo no chão. As árvores tudo queimado. Muito pena", lamenta. Ela se lembra bem do horror da guerra e, por isso, não quer voltar para a Síria. Se o conflito acabasse, iria visitar, afirma, mas morar lá não.

"Eu vi as pessoas sangrando, na rua. Horrível. Eu vi tudo isso, verdadeiro!", jura Hanan, aflita. Nessa época, o pai ajudava sírios feridos, levando-os até hospitais na Turquia, de carro. Por essa atividade, Khaled foi preso e torturado pelo regime de Bashar al-Assad. Teve os dedos do pé quebrados, foi submetido a choques elétricos e espancamentos.

A família contou a Hanan que seu pai estava viajando, para não assustá-la. Khaled não queria que os filhos o vissem desfigurado. Apesar disso, depois de sete meses sem encontrar o pai, um tio de Hanan a levou à prisão.

Destruição em Idlib, Síria
Destruição em Idlib, cidade-natal de HananFoto: Reuters/A.Abdullah

"Ele estava com uma barba assim...", ela aponta para o chão, como se os pêlos chegassem até os pés, e ri. "Tô brincando, tava até aqui", e põe a mão na altura do peito. Passado o riso, sua feição muda drasticamente. "Ele estava todo machucado, aí ficou horrível pra gente ver ele assim. Fiquei chorando o dia inteiro. Até agora, tô lembrando e fico triste."

Quando Khaled saiu da prisão, um ano depois, descobriu que estava ameaçado de morte pelo governo e pelo "Estado Islâmico" (EI). Resolveu fugir para Damasco e depois para Daraa, próxima da fronteira com a Jordânia. Não queria colocar a família em risco e, por isso, viajaram por caminhos diferentes. Khaled teve que passar por 15 bloqueios militares, disfarçado de policial.

A morte dos passarinhos

A família ficou dois meses em Daraa, até que um bombardeio atingiu a casa onde estavam abrigados. Hanan, que tinha sete anos, estava no primeiro andar. "Eu lembro, as mães estavam fazendo comida. Quando escutou isso, elas pegaram a gente no colo, colocaram no cantinho, para não morrer."

O pai e o irmão de Hanan saíram da casa para ajudar os feridos e carregar os mortos. "Eu estava bem pequeninha, não tava sabendo o que significa a guerra. Agora eu já sei", diz. Sua memória mais viva do episódio é da morte dos passarinhos, atingidos pelo bombardeio.

"Meu irmão segurou um assim [junta as mãos em concha]. A cabeça dele ficou sangrando. Demos água para ele beber, mas ele morreu. Tadinho! Todos os passarinhos que estavam lá morreu", descreve Hanan.

Pouco tempo depois, a família fugiu de novo, dessa vez para a Jordânia. Khaled caminhou mais de 16 horas para cruzar a fronteira, pelas montanhas. Hanan, a mãe e o irmão foram de carro, e fizeram o trecho final, de três horas, a pé. "As bombas estavam em cima da gente. Fiquei com medo de não ver mais meu pai."

"Todas as coisas feias"

Ao passar a fronteira, a família foi enviada para o campo de Zaatari, no deserto da Jordânia, onde ficou por dois anos e meio. Hanan chegou ao local no início da construção do abrigo, e não havia luz, nem água. As tendas eram frágeis e o calor do dia, insuportável. De noite, não se via a um palmo de distância. Os banheiros ficavam afastados e, na penumbra, a família precisava de três celulares para iluminar o caminho.

Depois de um ano, as condições melhoraram, mas Hanan ainda descreve o campo como o lugar de "todas as coisas feias". "Tem cobra, rato e o marido da cobra [escorpião]. Só as coisas que mordem e matam. Não tem nada de gato e cachorro. Não tem a cor verde, é só terra. É horrível no campo. Eu tenho muito medo lá", afirma. Para não deixar dúvidas, Hanan contrai o corpo e faz uma cara de susto.

Poucos segundos depois, muda o semblante e ensaia alguns passos de balé pela sala: "Plié, spacatto!", brinca. Sugere uma foto com a Tocha Olímpica e faz poses. Ela conta que, no colégio, algumas crianças ficaram com inveja e, de vingança, roubaram seu celular.

"Disseram que, se eu entregar a tocha, eles me devolvem", diz, desolada. Por mais que o telefone faça falta, a troca nem passa pela sua cabeça: "Claro que não!", protesta Hanan, enquanto devolve cuidadosamente para trás do sofá o objeto que guarda como um tesouro. "A tocha é a minha vida inteira!"