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"Haiti precisa de cérebros, tecnologia e investimentos"

Geraldo Hoffmann8 de fevereiro de 2006

Em entrevista exclusiva à DW-WORLD, Ricardo Seitenfus, enviado do governo brasileiro ao Haiti, faz balanço das eleições e revela plano de mudanças na missão da ONU no país. Força militar deverá dar lugar a apoio civil.

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Soldados brasileiros cuidaram dos locais de votaçãoFoto: AP

DW-WORLD: O chefe da missão de observadores da União Européia no Haiti, Johann van Hecke, disse que a eleição no Haiti foi "um milagre", diante da tensão que reinava no país antes e no dia votação. Como o senhor avalia o desenrolar do pleito?

Ricardo Seitenfus: Certamente essa percepção [de um milagre] decorre da total incompreensão da imprensa internacional, sobretudo da América do Norte e da Europa, da questão haitiana. Houve uma demonização do caso haitiano, que o país era um inferno, um caos, que não pode ser democrático. E ontem houve essa manifestação extraordinária de civismo e vontade de construir a paz e a democracia.

Apesar de denúncias de impedimento de candidatos da oposição, tumultos e mortes no dia da votação, o senhor diria que o pleito foi pacífico?

As mortes, se analisarmos como ocorreram, não foram absolutamente nada comparável ao que ocorreu nas eleições precedentes no Haiti. O que a mídia internacional esperava eram atentados, filas de eleitores sendo metralhadas, bombas sendo jogadas nos centros de votação. Ora, nada disso aconteceu. A eleição foi um grande sucesso, comprovado pela maciça participação do eleitorado, que não necessita votar, já que o voto não é obrigatório.

Os resultados só serão divulgados em alguns dias, mas René Préval liderava as pesquisas entre os 33 candidatos à presidência. Já é possível prever como vão reagir os perdedores?

Ricardo Seitenfuss
Seitenfus prevê período delicado no HaitiFoto: Rafael Santos de Oliveira

Préval era franco favorito, com chances de ser eleito já no primeiro turno. A reação dos perdedores dependerá do índice que cada um obtiver. Eu acredito que 25 dos 32 perdedores não dirão nada, porque terão índices ínfimos de votação. Quanto aos outros, a minha sugestão é que haja um diálogo, que talvez possa desembocar num governo de união nacional. O período até a posse dos novos dirigentes em 29 de março é de extrema delicadeza e exige muita atenção da comunidade internacional e das forças de paz.

Préval é considerado um testa-de-ferro do presidente destituído Jen-Bertrand Aristide. O que pode acontecer, se Aristide voltar ao país?

Não concordo que ele é um testa-de-ferro do Aristide. Ele tem muitas diferenças com o Aristide e tem vida própria, é ponderado e conciliador. Mas há um problema real, que é o papel futuro, se houver, do ex-presidente Aristide. A posição de Préval é acenar com a Constituição, que dá o direito a todo haitiano a sair e retornar ao país. A minha impressão é que Aristide não voltará, porque as condições de segurança ainda são muito precárias no Haiti e ele fez muitos inimigos em seu caminho.

O senhor disse que a situação da segurança ainda é muito precária. A espiral da violência agora terá um fim, depois das eleições?

A espiral da violência foi muito localizada no bairro de Cité Soleil, onde nos últimos meses foi montada uma indústria do seqüestro. Mas houve um acordo tácito entre todos os envolvidos nas eleições e essas 34 gangues organizadas, para que suspendessem suas atividades para permitir o bom desenrolar da eleição. É por isso que nos últimos 13 dias não ocorreu mais nenhum seqüestro, quando a média era de sete, oito por dia. Préval me disse que vai eliminar essas gangues, se chegar ao poder.

Ele disse como fará isso?

Ele não vai precisar dizer. Pois, se não houver segundo turno, isso será feito já nos próximos dias pela Minustah. [Se nenhum dos candidatos obtiver mais de 50% dos votos, a eleição será decidida no segundo turno, marcado para o dia 29 de março.] O general brasileiro José Elito Carvalho Siqueira já disse que a Minustah (Missão de Estabilização da ONU no Haiti) vai ocupar o Cité Soleil. Ele só estava esperando passar as eleições.

Leia mais: O futuro da missão da ONU no Haiti

O processo eleitoral também foi considerado decisivo para o futuro da Minustah. Críticos no Brasil, no Canadá e também na Europa falam que esta missão está fadada ao fracasso. O senhor também vê esse perigo? O novo governo pode mandar as tropas embora?

Haiti Jean-Bertrand Aristide und Rene Preval
Aristide (d) e Préval, juntos em 2001, hoje com divergênciasFoto: AP

Nenhum candidato competitivo preconizou a partida da Minustah. Inclusive o Préval declarou que pretende acolher por no mínímo dez anos a comunidade internacional. O que importa não é tanto o tempo da colaboração internacional ao Haiti, mas a qualidade e a natureza desta cooperação.

Ela precisa ser mais ágil, gastar seus recursos preferencialmente com os fins e não com os meios e enfrentar os desafios sócio-econômicos, a reconstrução da infra-estrutura e das instituições e finalmente lançar um ágil e ousado plano de diminuição da miséria.

A ONU disse que o desarmamento do Haiti fracassou. Isso não é um sinal de fracasso da missão?

Não creio que a missão tenha fracassado. Ao contrário. A organização das eleições de 7 de fevereiro constitui prova cabal dos resultados. Claro está que a transição foi demasiado longa, o mandato do Conselho de Segurança da ONU, ambíguo e praticamente nada foi feito na área social.

O Brasil até agora marcou ou perdeu pontos na tentativa de usar a missão no Haiti como credencial para um assento permanente no Conselho de Segurança, objetivo que persegue junto com Alemanha, Índia e Japão?

Se trata de outra acusação sem fundamento. Não há nenhuma ligação de causa e efeito entre a hipotética, pois emperrada está, reforma do CS e a presença do Brasil no Haiti. Esta presença se insere num movimento de afirmação de uma diplomacia universalista que, pela primeira vez, demonstra não ser indiferente ao sofrimento dos irmãos haitianos. Se trata, pois, da aplicação do princípio da não-indiferença.

O senhor foi encarregado pelo governo brasileiro de traçar cenários de atuação pós-eleitoral da Minustah. O que precisa mudar concretamente?

Regresso amanhã ao Brasil (aqui cheguei no dia 18 de janeiro). Estou elaborando uma análise sobre a situação política do Haiti e os cenários pós-eleitorais. Tais documentos serão entregues ao governo brasileiro e deverão ser utilizados para auxiliar na avaliação de nossa atuação. A nova fase que se abre com um governo legitimo é a de enfrentar os desafios da reconstrução do país e do desenvolvimento. Ou seja, a substituição do militar pelo cooperante civil.

Isso quer dizer que os militares vão embora e vêm os técnicos?

Hunger und Armut in Haiti, Frau mit Kind im ehemaligen Gefängnis Fort Dimache
Pobreza castiga milhões de haitianosFoto: AP

Vai prosseguir a presença securitária, mais policial do que militar, mas será agregada a ela – este é o teor do relatório que entregarei ao governo brasileiro – uma dimensão civil, de cooperação, com dois objetivos: implementar medidas urgentes, de impacto, para amenizar a questão da pobreza, desnutrição e saúde pública; e, numa segunda fase, atacar os problemas estruturais, como reconstrução do Estado, a recuperação de infra-estrutura, a geração de postos de trabalho e o desenvolvimento rural.

Soldados da França e Espanha participam da Minustah. Alguns monitores europeus também acompanharam as eleições. A Europa faz o suficiente pelo Haiti, ou poderia fazer muito mais?

Há países que possuem uma maior responsabilidade frente ao drama haitiano. Penso na França, nos EUA e no Canadá. Me parece evidente que a cooperação internacional (Europa e América do Norte) no Haiti é marcada por reiterados fracassos. Veremos se agora, com a sensibilidade latino-americana e a legitimidade do novo governo, o Haiti começa a trilhar um caminho capaz de resgatar a grande maioria do povo, que se encontra jogado à desumanidade.

Há tantos focos de crise atualmente – Iraque, Afeganistão, Palestina etc. – que o Haiti praticamente sumiu da agenda internacional. Perdeu-se a esperança de poder salvar o país do caos?

O país não está num caos. Não há guerra, não há terrorismo, existe uma grande vontade de mudar as condições sociais e econômicas. Portanto, não há termo de comparação da situação haitiana com as citadas na pergunta. O Haiti precisa de cérebros, tecnologia e investimentos. De todos estes elementos, o Ocidente dispõe. Todavia parece que ele prefere distribuir e vender armas do que desenvolvimento.

Qual é a opção que sobra, se essa nova tentativa de democratização do Haiti não der certo?

Vai dar certo, se a comunidade internacional não repetir os erros do passado no Haiti. Normalmente, ela organizava as eleições, como fez agora, e quando eram divulgados os resultados ia embora. Esse seria o erro mais grave que a comunidade internacional cometeria. Ela deve permanecer, respondendo às demandas do novo governo haitiano. A democracia representativa só pode vigorar no Haiti, se for capaz de responder às demandas populares.

Ricardo Seitenfus, doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra, é professor titular da Universidade Federal de Santa Maria e Diretor da Faculdade de Direito de Santa Maria (Fadisma). Autor, entre outras, das obras Haiti: a soberania dos ditadores (esgotado) e Relações Internacionais (Editora Manole). É a segunda vez que participa de missão oficial no Haiti.