Documenta
31 de maio de 2007A decisão de Horwath de levar o visitante da documenta ao cinema e não fazê-lo ver um filme aqui e outro ali, entre as obras de artes expostas, põe fim às acusações de que exposições – como a última documenta, por exemplo – integram filmes de curta e longa duração, sem, no entanto, prestar atenção na forma como estes devem ser exibidos. Má qualidade de som, pessoas entrando e saindo das "caixas pretas" e um sem-fim de interrupções que acabam, não raramente, numa recepção deficiente da obra exibida.
"Filmes normais"
A seleção de Horwath em Kassel atrela a história do cinema à história da própria documenta, através da limitação do espaço de tempo do material escolhido: da segunda metade do último século até hoje. Ou seja, um período que começa com a primeira documenta, em 1955, e termina em 2007.
Serão 50 programas de um ou mais filmes, a serem exibidos em duas seções não consecutivas durante os cem dias de documenta. São filmes "de todos os gêneros", garante a curadoria: do popular à vanguarda e do documentário ao experimental.
Apesar da "diversidade" anunciada, os primeiros nomes de diretores listados deixam claro o pensamento atrás da escolha, que começa com ninguém menos que Roberto Rossellini, Abbas Kiarostami e Johan van der Keuken. Horwath cita em declarações à imprensa alemã seu retorno ao "conceito polêmico de um cinema normal", que remete a um ensaio do crítico Bert Rebhandl, de 1997, escrito durante a documenta 10, sob a curadoria da francesa Catherine David.
O "filme normal", no caso, é visto por Horwath não como o cinema comercial aos moldes de Hollywood, mas como um tipo de cinematografia que, apesar do apuro estético, raramente encontra espaço no universo das artes plásticas e numa mostra como a documenta.
Clássicos e experimentais
A idéia é distanciar-se do nicho dos portraits de artistas plásticos ou do foco específico em filmes experimentais, para dar espaço aos cânones da história do cinema.
Entre os escolhidos está, por exemplo, o clássico Viagem à Itália (1953), de Rossellini, o road movie iraniano Vida e nada mais (E a vida continua), de Kiarostami, e Férias Prolongadas, do grande documentarista holandês Johan van der Keuken, morto depois de concluir o filme, que tematiza com rara delicadeza seu próprio câncer.
Dos 96 filmes selecionados, consta apenas um brasileiro: Porto das Caixas (1961), de Paulo César Sarraceni, um retrato do machismo na sociedade brasileira e uma homenagem sutil da curadoria da mostra aos primórdios do Cinema Novo.
Destruindo mitos
Nos cem dias de documenta, haverá certamente quase tudo para quase todos os gostos. Desde Mouchette, a virgem possuída (1967), de Robert Bresson, à noite de homenagem à Filmkunst, um gênero cinematográfico que, segundo os organizadores da mostra, "destrói os mitos do cotidiano [numa alusão às Mitologias, de Roland Barthes] e as ilusões da continuidade do tempo, sobre os quais esses mitos se apóiam".
Não destruído, mas sim transformado em história e embalsamado como obra de arte numa "documenta", está ainda, por ironia do destino, Num ano de 13 luas (1978). "O mais histérico, desesperado e grandioso filme de Rainer Werner Fassbinder", segundo os organizadores em Kassel.
Um filme no qual o cineasta alemão revela, com seu olhar cruel e impiedoso, os últimos dias na vida do transexual Elvira – personagem que destila desespero e neuroses, envolto pela arquitetura de concreto de Frankfurt e em busca de conforto num universo completamente desolado. Um exemplo de "vida nua" na ficção, bem antes de Agamben.