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Diferenças de diferenças: impressões de uma visita à documenta 11

Paulo Chagas10 de setembro de 2002

A valorização das diferentes formas e meios de expressão artística caracteriza a 11ª edição da documenta, a mais importante exposição de arte contemporânea, que se realiza a cada cinco anos em Kassel.

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"The Four Seasons of Veronica Read", vídeo-instalação da artista turca Kutlug AtamanFoto: AP

O que distingue uma obra de arte de um filme documentário mostrado na tevê? Esta pergunta certamente não escapará ao visitante da documenta 11, ao se deparar com as imagens da vida dos esquimós, exibidas em vários monitores de tevê distribuídos ao longo de um dos corredores da exposição.

Nesta série de 13 filmes - Nunavut (Nossa Terra, 1994-95) -, uma mistura de fatos, ficções e peformances, a produtora independente Iglootik Isuma propõe preservar a cultura oral do povo esquimó, que sobrevive há 4000 anos sem nenhum tipo de escrita. Cenas de caça à foca, a vida íntima dentro dos iglus, velhos, cachorros, crianças, preparação da comida, em suma, nada de espetacular. Onde está a diferença?

Este é apenas um exemplo de vários trabalhos semelhantes, apresentados na documenta 11: o ser humano, a cultura e aspectos da vida social retratados em vídeo e fotografia, sem pompa nem ornamentos, mas tentando trazer à tona percepções de formas sociais e culturais. Cenas urbanas da Índia, comunidades rurais do Senegal, curso de prevenção sexual para mulheres no Congo, fotos do terremoto de Kobe, fotos de marinheiros e de portos do Oriente Médio, aglomerações urbanas do Terceiro Mundo, Nova York depois dos atentados terroristas, etc. Mas será que isto, apenas, justifica a obra de arte?

Diante da enxurrada de imagens de tevê, publicidade e outros apelos visuais da sociedade contemporânea, a arte não procura mais encenar criticamente a mídia de massa (como por exemplo a pop art). Ela trata agora de desviar o olhar do brilho e da uniformidade tecnológica, resgatar formas de observação do cotidiano e usar a tecnologia pelo avesso: para expor imagens e experiências distintas, mostrando formas de auto-observação e observação o mundo.

A imagem técnica incorporou-se definitivamente ao nosso mundo, mas a banalidade cega a nossa visão, na medida em que nos faz ver certas coisas e exclui outras. Contra a exclusão das diferenças, este aspecto tão fundamental da existência que nos impede de criar uma verdadeira sociedade global, a arte cumpre o seu papel de criar o jogo das diferenças, utilizando os mais diversos suportes: fotografias expostas contra a parede, projeção de slides, projeção de vídeos em telas que variam do minúsculo ao gigantesco, instalações de vídeo onde o observador é incorporado ao espaço.

Tempo e espaço

- Visitar a documenta 11 exige tempo e concentração. No mínimo, é preciso dois dias para se observar atentamente algumas das 450 obras dos 118 artistas, sendo que 40 da África, Ásia e América Latina. Elas estão espalhadas por cinco diferentes prédios de Kassel, incluindo um museu, uma estação ferroviária e uma antiga fábrica de cerveja. Além disso, algumas obras se apresentam ao ar livre: esculturas, instalações sonoras e visuais incorporadas ao verde da paisagem do imenso parque da cidade.

O público comparece em massa e a sua presença contribui para justificar o caráter popular da exposição. Alemães e turistas, não são raras as filas de espera diante de cada prédio e também para penetrar em algumas das salas, onde só se admite a presença de um número limitado de observadores. A encenação de espaços, sob a forma de instalações visuais e sonoras, é um dos pontos fortes da mostra.

Alguns artistas expõem seus próprios ateliês, como o alemão Dieter Roth (falecido em 1998), o croata Ivan Kozaric e a iraniana Chohreh Feyzdjou. Esta última é uma artista de origem judaica que nasceu numa sociedade muçulmana e prosseguiu sua carreira em Paris. Ao saber que iria morrer de leucemia, transformou toda a sua obra num meticuloso arquivo - pinturas, desenhos e objetos diversos que foram enrolados, enlatados, postos em vidros, etiquetados - tudo mais ou menos ofuscado por uma camada de tinta preta: a presença da vida e da morte e, ao mesmo tempo, a tentativa de preservar a identidade e exibir a fragilidade da criação.

George Adéagbo, do Benin, tematiza a diversidade cultural na instalação O explorador e os exploradores diante da história da exploração...! - uma exuberante alegoria composta de centenas de recortes de jornais, livros, desenhos, pinturas, esculturas típicas africanas, e objetos africanos e europeus cuidadosamente espalhados pelo chão e paredes. No centro desse espaço, uma canoa africana repleta de objetos, inclusive uma bandeira da ex-Alemanha Oriental.

O português Artur Barrio, que vive desde a década de 60 no Brasil, mergulha o observador em experiências objetivas e subjetivas na sua instalação Idéia/Situação. O recinto escuro faz lembrar o interior das casas de camponeses brasileiros. O chão está coberto com uma camada de pó de café, misturado a outros materiais que estimulam a percepção do observador: cheiro, tato, visão e estímulos sugeridos pelas paredes esburacadas, rabiscadas de frases, desenhos e palavras. No meio do espaço, um sofá à disposição do observador. Mas se este ficar muito tempo sentado, um guarda pede gentilmente para sair, pois a fila de espera é longa.

Elemento em vias de desaparecimento

- Uma das propostas mais originais é a do brasileiro Cildo Meireles - Disappearing Element/Disappeared Element (Imminet Past) [Tradução: Elemento em desaparecimento/Elemento desaparecido (Passado Iminente]. São dez carrocinhas de sorvete trazidas especialmente do Brasil, vendendo picolés iguais aos que se vendem normalmente, só que fabricados apenas com água. Os picolés são vendidos à porta dos locais de exposição e custam um euro cada. Foram fabricados e embalados por presidiárias, para as quais é revertida a receita da venda.

A obra pode ser observada em vários níveis de significação: a iminente e progressiva escassez de água no mundo, o questionamento das noções de valor de uso e valor de troca - que foi sempre uma das preocupações do artista -, e a elaboração de um sistema autônomo de produção em pequena escala. O trabalho surpreende pela simplicidade e economia de recursos, ao mesmo tempo que chama a atenção para temas como a degradação do ambiente, a relação da arte com a economia e a responsabilidade social do artista.